Fiorucci Made Me Hardcore, Mark Leckey, 1999
Muita da produção contemporânea de fotografia e vídeo parece assombrada - pela história da arte, e pelas aparições fantasmagóricas que são reanimadas em meios reprodutivos, performances ao vivo, e no mundo virtual. Usando datados, obsoletos, ou quase extintos dispositivos estilísticos, temas, e tecnologias, esta arte melancólica encarna a nostalgia por um passado que, de outra forma, seria irrecuperável. Com estas palavras, o museu Guggenheim apresentava a oportuna exposição Haunted, que incluía o trabalho de Marina Abramovic, Bernd and Hilla Becher, Christian Boltanski, Sophie Calle, Tacita Dean, Stan Douglas, Felix Gonzalez-Torres, Pierre Huyghe, Joan Jonas, Ana Mendieta, Richard Prince, Robert Rauschenberg, Cindy Sherman, Hiroshi Sugimoto, Jeff Wall e Andy Warhol, entre outros artistas. O vídeo Fiorucci Made Me Hardcore, do artista plástico britânico Mark Leckey, não estava presente na mostra, mas é um dos melhores exemplos da forte tendência que se pretendia retratar.
Fiorucci Made
Me Hardcore foi concebido
a partir de imagens e sons, recolhidos de antigos discos, documentários televisivos e outros arquivos, relativos a
culturas urbanas dos jovens ingleses das décadas de 1970, 1980 e 1990. Entre a
northern soul e a rave, partimos numa viagem por salões de baile, discotecas, armazéns e
campos. Durante cerca de 14 minutos, jovens dançam freneticamente,
num movimento interrompido por técnicas e efeitos de edição que evidenciam
pormenores de jogos de anca, marcações de braços, roupas, cortes de cabelo,
rituais e outras referências culturais. A luz e a qualidade da imagem - que
lembram as antigas cassetes VHS ou a mais recente compressão digital - aliadas à slow motion, transformam os jovens em figuras espectrais, vindas de um outro
mundo. A narrativa criada por Leckey assume que a rave não surgiu como um fenómeno isolado, mas sim no seguimento
de outros rituais e culturas que a antecederam.
O vídeo foi
inicialmente apresentado em espaços expositivos mas a sua partilha na internet
deu-lhe uma popularidade invulgar para este tipo de projecto. O maior culto
veio do sector da música electrónica mais dançante. Alguns críticos musicais
consideram que, na primeira metade dos anos 90 - com a rave, o acid house e o
jungle - teve lugar o ultimo grande fenómeno musical dos nossos tempos. Com a
chegada de 2000 e a vulgarização do acesso à internet, foi criado um arquivo
digital sem precedentes e de acesso quase ilimitado. Como resultado, iniciou-se
uma obsessão com o passado mais próximo e a sua utilização exaustiva na criação
musical. A nova condição da era digital não favoreceu uma concentração no
presente e o aparecimento de novas
cenas ou revoluções. Isto mesmo é
abordado intensivamente por Simon Reynolds, no livro Retromania: Pop
Culture's Addiction To Its Own Past. Criado em 1999, Fiorucci Made Me Hardcore pode também ser visto à
luz do pensamento de Reynolds.
No Reino Unido,
no início da década de 1990, as festas rave eram realizadas principalmente no
campo, onde jovens oriundos da classe operária aliavam a fruição da música electrónica,
com a dança e o consumo recreativo de drogas. A rave representou o último
momento em que a cultura musical entrou em confronto com o poder politico. Para
controlar o incrível aumento de popularidade desses eventos, os políticos
ingleses inventaram secções especificas de grande conteúdo restritivo no
polémico Criminal Justice and Public Order Act 1994. Apesar de ter sido apresentado como forma de
controlar o ruído e a desobediência, os mais críticos acusaram o diploma de ser
um meio para eliminar um movimento de jovens que estava a retirar dos centros
urbanos os consumidores de bebidas alcoólicas, taxadas com impostos, para os levar
para o campo, onde consumiam drogas que não criavam quaisquer receitas para o
Estado. A presença deste lado desafiador, que a cultura musical tanto valoriza, também nos ajuda a compreender a nostalgia em relação à rave, sentida
por críticos, produtores e consumidores; e estamos a falar tanto dos mais
velhos como dos mais jovens. Uns em confronto com as suas memórias gloriosas e
os outros desiludidos por não terem podido fazer parte desse, último, momento
marcante. Irremediavelmente, com a chegada da era digital, desapareceu por
completo a capacidade contestatária e a experiencia comunitária que a rave
representava.
Para aguçar ainda
mais a nossa imaginação, a nova editora The Death Of Rave vai disponibilizar, a partir do final do mês, uma edição de quinhentos vinis, compostos pelas trilhas
sonoras de dois vídeos da autoria de Mark Leckey: Fiorucci Made
Me Hardcore, no lado A, e
GreenScreenRefridgerator, no lado B. Se no primeiro caso, a trilha sonora será semelhante àquela que ouvimos no vídeo, no segundo, foi toda reeditada. Fiorucci Made Me Hardcore pode ser visto e encomendado nos links abaixo.
Os fantasmas voltaram. E dançam. Rave on! //
vídeo
disco
Fiorucci Made Me Hardcore, Mark Leckey (The Death of Rave, 2012) |
Sem comentários:
Enviar um comentário