Sei donne per l'assassino (Blood and Black Lace, Mario Bava, 1964)
Poucos dias depois da apresentação de
Kiyoshi Kurosawa - O Padrinho do Terror, a Cinemateca Portuguesa regressa aos clássicos com um ciclo dedicado ao
maestro Mario Bava (1914–1980), em parceria com a
8 1/2 Festa do Cinema Italiano. Serão exibidas sete obras em 35 mm e duas em formato digital:
La maschera del demonio (
Black Sunday, 1960),
I tre volti della paura (
Black Sabbath, 1963),
La ragazza che sapeva troppo (
The Evil Eye, 1963),
Sei donne per l'assassino (
Blood and Black Lace, 1964),
Terrore nello spazio (
Planet of the Vampires, 1965),
Diabolik (
Danger: Diabolik, 1968),
Reazione a catena (
A Bay of Blood, 1971),
Cani arrabbiati (
Rabid Dogs, 1974) e
La venere d'ille (1979). As sessões repartem-se pelas salas da Cinemateca e do Cinema S. Jorge e, nos primeiros dois dias, serão acompanhadas por contactos entre o público e o colaborador e filho de Mario Bava, Lamberto, realizador de
Dèmoni (
Demons, 1985) e
Dèmoni 2... l'incubo ritorna (
Demons 2, 1986), ambos produzidos por Dario Argento.
Mario Bava, enquanto realizador, é reconhecido como o precursor do
giallo, género italiano que associa crime, suspense e erotismo (
La ragazza che sapeva troppo) - mas também da sua consolidação (
Sei donne per l'assassino) - e do dispositivo de assassinatos em série típico do
slasher, a que alguém chamou ironicamente "body count" (
Reazione a catena). Para os mais novos que possam ter visto
Reazione a catena muito depois dos clássicos
slasher da década de 1980, o filme de Bava parecia uma enorme paródia antecipada a esse género - tornando, de forma repetida, os assassinos vítimas de outros assassinos e que começa em tom de ironia com a morte de um insecto numa baía, encenada principalmente com som. Em
Friday the 13th Part 2 (1981), Steve Miner assinala a herança com a cópia de uma cena memorável de
Reazione a catena, em que um casal é "abatido" com uma lança que atravessa os dois corpos, durante um acto sexual na cama. Porém, a carreira de Mario Bava começou muito antes de se entregar à realização, com trabalhos de director de fotografia, operador de câmara e desenho de luz e efeitos especiais, primeiro em assistência ao pai, Eugenio, e depois a outros técnicos e realizadores importantes do cinema local e internacional (entre eles, Jacques Tourneur e Raoul Walsh), sendo igualmente convidado por produtores para terminar filmes de realizadores que abandonavam as filmagens ou eram despedidos. No fim deste percurso, chega com maturidade à estreia na realização de longas metragens,
La maschera del demonio, evidenciando domínio na definição do movimento, o que se reflecte em vertiginosas sequências de enquadramentos e raccords de uma riqueza visual que vai muito além do gótico da Hammer, em que se inspira. Ainda que não ouçamos a sua voz, já que mesmo na versão internacional foi dobrada, uma estrela nascia no seu primeiro grande papel no cinema, aparição única mas da qual não se pode dissociar o cinema de Mario Bava: a inglesa Barbara Steele, dona de uma beleza invulgar e que se tornaria numa das actrizes maiores do cinema de terror europeu, lugar que a deixava pouco confortável pois não era apreciadora do género, preferindo papeis mais convencionais. Tal não a impediu de continuar a aceitar presenças, que se tornariam inesquecíveis, dentro deste tipo de filmes:
The Pit and the Pendulum (Roger Corman, 1961),
L'orribile segreto del Dr. Hichcock (
The Horrible Dr. Hichcock, Riccardo Freda, 1962),
Danza macabra (
Castle of Blood, Antonio Margheriti, 1964) ou
Amanti d'oltretomba (
Nightmare Castle, Mario Caiano, 1965).
Falar da obra de Mario Bava é também reconhecer a invisibilidade do seu nome em muitos títulos, em que é omitido na ficha técnica. Um enorme artesão e mago do artificio e da criação de atmosfera com um mínimo de meios -
just to create an illusion, and effect, with almost nothing, de acordo com as suas próprias palavras -, inventando inebriantes jogos de som, cor, luz e nevoeiro capazes de perturbar a serenidade, o que levou muitos colegas de profissão a pedir-lhe ajuda não creditada para aplicar truques ou filmar planos de difícil execução - a que ele respondia com modéstia e agrado, perante a possibilidade de aprender com a resolução de um problema exigente. Bava é um dos grandes mestres italianos e parte do grupo selecto que é mencionado em
Il mio viaggio in Italia (
My Voyage to Italy, 2001) de Martin Scorsese. Nesta obra pessoal de partilha do seu amor pelo cinema italiano, Scorcese introduz Roberto Rossellini, realçando a estranheza de este ter iniciado a carreira, com duas curtas metragens em colaboração com Mario Bava,
Il tacchino prepotente e
La vispa Teresa (ambas em 1939), num encontro inesperado entre duas praticas e entendimentos antagónicos do fazer cinema. De um lado, o neo-realismo de Rosselini; do outro, o cinema fantasista de Mario Bava. No período do pós-guerra, Bava participa no esforço de reconstrução do cinema italiano, através de uma alternativa ao neo-realismo, encabeçada pelo realizador Riccardo Freda, a quem ajuda a acentuar a força plástica de filmes de orçamentos confortáveis inspirados por obras literárias vindas da cultura popular. No entanto, nos projectos que iria assinar com o seu nome, os produtores confiam, antes de mais, na sua capacidade de fazer muito com quase nada, o que significa filmar debaixo de apertadas agendas e precárias condições de produção. Sobre a sua única incursão na ficção científica,
Terrore nello spazio, comentou:
I had nothing, literally. There was only an empty soundstage, really squalid, because we had no money. And this had to look like an alien planet! What did I do then? I took a couple of papier-mâché rocks from the nearby studio, probably leftovers from some sword and sandal flick, then I put them in the middle of the set and covered the ground with smoke and dry ice, and darkened the background. Then I shifted those two rocks here and there and this way I shot the whole film.
A mostra que lhe é dedicada pela Cinemateca Portuguesa e a
8 1/2 Festa do Cinema Italiano debruça-se sobre o seu trabalho enquanto realizador e, maioritariamente, sobre a sua ligação ao cinema de terror e ao fantástico. Da selecção final, poderíamos lamentar ausências, entre as quais: o clássico
I vampiri (
Lust of the Vampire, 1956), primeiro filme de terror italiano do pós-guerra, parcialmente dirigido por Mario Bava, depois de o amigo Riccardo Freda ser forçado a abandonar as filmagens; obras maiores como
La frusta e il corpo (
The Whip and the Body, 1963),
Operazione paura (
Kill Baby, Kill, 1966) e
Lisa e il diavolo (
Lisa and the Devil, 1973); títulos em que a sua colaboração se confunde com a verdadeira autoria, de que
Inferno (1980) de Dario Argento é um dos exemplos mais notáveis; e outros géneros da sua obra, menos conhecidos, como o épico histórico italiano, habitualmente denominado por
peplum ou
sword and sandal,
Ercole al centro della Terra (
Hercules in the Haunted World, 1961), o western,
La strada per Forte Alamo (
Road to Fort Alamo, 1964) e
Roy Colt e Winchester Jack (1970), ou a comédia sexual,
Quante volte... quella notte (
Four Times that Night, 1972). Poderíamos, assim, entreter-nos assumindo o papel de programadores, num exercício redundante que não esconderia o óbvio. A iniciativa de programar e a possibilidade de ver em bloco sete títulos de Mario Bava em 35 mm, no local para onde eles foram desenhados, que é a sala de cinema, é um acontecimento pouco comum e de maior relevo.
A partir de hoje, nas páginas do blogue e do Facebook do
there's something out there, para celebrar este evento vamos dedicar um especial a Mario Bava onde nos propomos lançar algumas pistas sobre a sua obra, em particular sobre outros aspectos que não estão presentes no ciclo da Cinemateca Portuguesa e da
8 1/2 Festa do Cinema Italiano.
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