Live. Die. Repeat.


Edge of Tomorrow (No Limite do Amanhã, Doug Liman, 2014)





Se os videojogos estão por todo o lado, então é impossível não notar o modo como contaminam os dispositivos do cinema que se faz em Hollywood. Vejamos o caso de Edge of Tomorrow (No Limite do Amanhã, Doug Liman, 2014), em que a personagem de Tom Cruise (William Cage) tem de morrer e ressuscitar o número de vezes que for necessário até que consiga completar as missões que lhe permitam salvar o mundo. Uma apresentação minimal sem preocupações de carácter psicológico ou de complexos dados biográficos, empurra imediatamente Cage para a acção, num cenário típico de ficção cientifica de série B - esqueçamos os ostensivos meios financeiros envolvidos -, com a Terra a ser invadida por extraterrestres ultra-rápidos e letais, em que opera como uma personagem de videojogo, recorrendo a um conjunto limitado de recursos que incluem uma equipa de ajudantes, armas e munições, e seguindo o processo linear que o cartaz do filme enuncia: live, die, repeat.

Cada "game over" implica um novo começo que, por ser uma repetição, é o principal instrumento que converte Cage em "personagem de jogo"/"jogador", ao fornecer-lhe informação privilegiada sobre a posição certa e as falas das outras personagens, e resulta essencial para melhorar a performance e explorar os recantos do cenário de jogo, estabelecendo percursos adequados e treinando habilidades. Enquanto assume a face de jogador, Cage espelha o desanimo da "missão impossível" (mais uma vez, Tom Cruise sob o desígnio das Mission: Impossible), mas também a angustia do recomeço, o “déjà vu” do refazer do percurso para retornar ao anterior ponto de morte e aí reinventar a defesa e o ataque para ambicionar o acesso ao nível seguinte. Sabe que qualquer fracasso pontual que comprometa seriamente a meta final, seja uma lesão grave ou a escolha de um atalho errado, obriga a um imediato “reset”, ou seja uma nova morte, agora consentida, que pode ser perpetrada pelo próprio Cage ou por outro elemento da equipa. Por isso, com o passar do tempo, a sua expressão facial denuncia as mortes infindáveis, como o jogador acentua o cansaço que arrasta ao longo das noites mal dormidas e dos dias gastos a testar novos cenários de jogo.

Porém, há um momento de viragem em que a personagem de videojogo recupera dimensão psicológica e se materializa definitivamente em herói de cinema, o que não resulta indiferente na relação que estabelece com o espectador. Cage preenche o que está por trás da superfície de holograma da personagem de videojogo e ganha a necessária espessura para se transformar em herói de filme: a carne e o osso para que o espectador volte a encontrar o real e a temer a morte, sofrendo com a luta e a sobrevivência do herói. A determinado ponto, Cage é submetido a uma transfusão de sangue e ficamos a saber que perdeu a sua habilidade original: a capacidade de ressuscitar. É então que regressamos à pura narrativa clássica, em que ao herói resta viver/morrer uma única vez e aspirar a essa condição humana, não tanto para eliminar a ameaça das criaturas alienígenas e restaurar a ordem no mundo exterior, mas para descobrir a sua verdadeira redenção e se reencontrar na capacidade de amar. Posto isto, convém realçar que Edge of Tomorrow não é um filme em forma de videojogo gigante. É cinema mutante e que experimenta modelos narrativos (curiosamente realizado pelo pai das adaptações de Jason Bourne, o célebre agente secreto dos conflitos de identidade), cinema popular e que pede uma tela grande - do melhor que Hollywood pode oferecer na condição de blockbuster.



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