Do Outro Lado da Lua


 The Boy in the Plastic Bubble (O Rapaz na Redoma, Randal Kleiser, 1976) 



Do Outro Lado da Lua é uma nova rúbrica no there's something out there, cuja primeira convidada é a artista plástica Susana Pedrosa. Vive, actualmente, em Roterdão, onde concluiu um mestrado em artes plásticas no Piet Zwart Institute, depois de ter estudado na Faculdade de Belas Artes do Porto e na Maumaus (Lisboa). No dia 30 de Maio, vai apresentar em Zurique o trabalho Good Girls Go to Heaven, Bad Girls Go to Zurich, integrado no projecto Coffee Talks. Num confessionário instalado no espaço público da Langstrasse, uma rua conhecida pela sua prostituição legal, a artista convida a audiência a sentar-se e a ouvir uma confissão feita por uma performer, a partir de uma canção de Chris Isaak, Baby Did A Bad Bad Thing. Em Do Outro Lado da Lua acompanhamos Susana Pedrosa num percurso por The Boy in the Plastic Bubble, um filme que nos leva a reflectir sobre o processo de higienização, a que a nossa sociedade foi submetida. 

Outubro de 2011
Estou numa residência artística em Utrecht, na Holanda. A primeira semana de um projecto de intervenção no espaço público, naquele que foi considerado, em tempos, o pior bairro da Holanda, mas onde, ao fim de uns meses, acabarei por me sentir perfeitamente confortável (algo que ainda não sabia nesta altura). Sento-me na sala sem cortinas e escrevo. Vejo tudo o que se passa no exterior; o apartamento é no primeiro andar. E sei que se vê, do lado de fora, tudo o que faço. Sinto-me exposta. Na Holanda, há um ditado que diz que só esconde quem tem o que esconder, e assim me foi explicado o porquê de as pessoas terem as cortinas sempre abertas. Primeiro estranha-se, depois entranha-se. Uma amiga artista, numa das suas peças, criou a frase: 

COME CLEAN, GET DIRTY!
(Referia-se ao processo criativo e à necessidade de nos lançarmos num projecto, como se nos atirássemos para apanhar um comboio em movimento, saindo do ambiente protegido da nossa redoma)

Isto faz-me voar para uma cena de um filme que vi há uns tempos, The Boy in the Plastic Bubble (O Rapaz na Redoma, Randal Kleiser, 1976),  sobre a vida de um rapaz, Tod (John Travolta), que tem um sistema imunitário disfuncional, pelo que tem de viver numa incubadora. A sua condição obriga a família, os vizinhos e todos os que o rodeiam a tentar encontrar formas de se relacionarem com ele, apesar do receio inicial. Também leva as instituições (a escola, por exemplo) a adaptarem-se para o poderem receber. Mas, antes de mais, obriga-o a construir defesas para que possa lidar com a sua própria condição e a relacionar-se com os outros. O rapaz tem a sorte de ter uns pais que podem pagar todas as condições de que necessita e o seu caso atrai a atenção médica, pelo que ele acaba por dispor de facilidades que poderia não ter, tivesse ele nascido num país com um mau sistema de saúde ou na bancarrota, ou fosse filho de pais desempregados. Mas o filme é antes de mais uma metáfora e, por isso, vamos aceitá-lo enquanto tal. Mais adiante, a cena é a seguinte: Tod é internado e o colega de quarto é um outro adolescente que, após ter sido submetido a quimioterapia, perdeu as defesas e está temporariamente na mesma situação. O colega diz-lhe que, quando sair do hospital, a primeira coisa que pretende fazer será visitar uma prostituta (temos que ter em conta que são dois adolescentes privados de contacto directo com o  mundo exterior). Tod pergunta-lhe se não tem medo dos germes e o colega de quarto responde:

-       I want the germs! Be dirty, really dirty!

1959
Um carro azul chega e estaciona no jardim.

-       Hi Doctor!
-       I just came from the hospital. You’re preagnant. Congratulations.

Assim começa 
The Boy in the Plastic Bubble.
Depois do parto, o médico afirma que, enquanto não se descobrir um tratamento para a deficiência imunitária, Tod terá que viver num ambiente, o mais protegido possível. Não se pode prever quanto tempo irá durar a situação, mas fala-se em anos. Ao fim de quatro anos a viver no hospital, numa redoma de vidro, quando a criança vai para casa pela primeira vez,  esta é adaptada para a sua chegada. À medida que ele cresce, a redoma torna-se num quarto com divisões, semelhante a alguns exemplares da arquitectura modernista, uma espécie de estufa ou uma casa de vidro dentro da própria casa. Da redoma de Tod, há apenas uma porta aberta para o resto da casa, onde uma linha desenhada no chão traça a fronteira da qual não pode passar. A ligação com os pais é feita através do vidro e o toque através de luvas, nunca havendo contacto directo com a pele. Janta à mesa com a família dentro da redoma, joga xadrez dentro da redoma, faz a sua vida na redoma. Entretanto, encontra soluções criativas para se entreter: arranja um hamster, dança e ouve música - a própria redoma parece a casinha do hamster, incluindo as invenções que encontra para passar o tempo.

O filme mostra a atenção que lhe é dada pelos media e a estranheza revelada pelos colegas da mesma idade. No entanto, a sua condição também lhe proporciona alguns eventos extraordinários, nomeadamente a visita de um astronauta que comenta ter vivido durante alguns meses numa situação semelhante à sua, o que atrai a curiosidade e o fascínio dos colegas adolescentes. É instalado um sistema de vídeo-conferência na escola, para que o rapaz bolha possa assistir às aulas. Se ele não se pode adaptar ao meio, o meio adapta-se a ele. Nas aulas, Tod usa uns óculos postiços e goza com o professor, enquanto este está de costas, o que nos faz pensar nos pontos em comum entre um rapaz que cresceu numa redoma e os outros adolescentes. Para que ele possa sair à rua, é criada uma redoma transportável, parecida com uma cabina telefónica horizontal, com rodas. Os pais contratam uma enfermeira, para ficar com ele em casa, de forma a ganharem algum espaço e para lhe dar algum espaço também. O rapaz decide, finalmente, desenhar um fato de astronauta para poder ir à escola. Um fato laranja com uma viseira e uma bateria nas costas, que tem que carregar. Da cabeça sai um tubo semelhante ao dos aspiradores. A dado momento, a vivência do rapaz torna-se “vulgar”. Normaliza-se a sua ida à escola e as condições especiais de que necessita; dá-se uma normalização do estranho, pela habituação.

The Boy in the Plastic Bubble toca na questão voyeurística e na relação que o rapaz (um jovem Travolta, em fase de afirmação como sex symbol) estabelece com a vizinha Gena. Já que não pode sair de casa, Tod dedica-se a observá-la do seu quarto. Há uma cena em que a vizinha galopa a cavalo, salta por cima da redoma de vidro instalada no jardim, e Tod fantasia em andar a cavalo, enquanto a observa. O momento em que ela salta por cima da redoma, onde ele está deitado de barriga para cima, é algo sensual. O contacto que tem com ela, a partir da redoma, é quase tântrico. Uma relação de desejo que não se chega a concretizar, já que não se podem tocar directamente. Num outro momento, no fim de uma aula, Tod arranja-se para falar com Gena através do sistema de vídeo-conferência, como se tratasse de uma web date. Penso nas estratégias modernas para conhecer pessoas pela internet e nas redomas subtis que criamos à nossa volta.

O rapaz é de uma inocência extrema, o que o torna alvo de chacota por parte dos outros adolescentes - por exemplo, a vizinha aposta a dinheiro que é capaz de lhe dar a mão. As defesas que lhe faltam, não são apenas de nível físico, mas também no campo da interacção social. Tod é optimista e egocêntrico, como uma criança. Como quando obriga 
as pessoas a usar o auscultador, apesar de não ser necessário, para falar com ele através da redoma - com este tipo de estratégias performativas reclama ainda um certo poder e autoridade. O filme é também uma metáfora sobre a relação entre pais e filhos e a adolescência. Sobre o processo de desenvolvimento e criação de defesas para a vida adulta. O médico diz a Tod que tem a melhor desculpa do mundo para não crescer, quando se recusa a participar num programa experimental que o pode curar. A certa altura, ele está tão adaptado ao seu habitat que tem medo de sair, o que mostra a sua habituação às condições em que vive.

The Boy in the Plastic Bubble tem alguns momentos muito cómicos, pelo seu lado trágico-romântico. Isso acontece quando a vizinha adolescente chega a cavalo, de biquíni - qual heroína romântica - aos festejos do 4 de Julho na praia, e diz:

-       You like my horse, hã?

Outra das cenas a lembrar, é quando Tod vai à praia, dentro do seu fato de astronauta, e corre pela areia, de mãos dadas com a vizinha - numa cena que poderia mudar o nome do filme para “A Bela e o Astronauta”.

-       Do you ever feel like a visitor from outer space?

A dado momento, Tod junta-se aos colegas da escola, enquanto eles fumam substâncias ilícitas. Ele diz que sabe como é. E descreve uma sensação de “out of body travel”, como se estivesse na Twillight Zone, enquanto se concentra a olhar para um objecto. //

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