The Exorcism of Emily Rose (Scott Derrickson, 2005)
Em The Exorcism of Emily Rose (O Exorcismo de Emily Rose, 2005) de Scott Derrickson, ainda a negro, ouvimos gritos de dor e desespero. Logo depois, surge a primeira imagem: o arame farpado ensanguentado que rodeia a propriedade dos Rose, e uma gota de sangue cai. Esta é a porta que separa o mundo da razão do dos espíritos. E é pela mão de um médico legista, um homem da ciência, que a ultrapassamos e nos dirigimos a um cenário de desolação. Enquanto isso, os créditos surgem fantasmáticos sob a forma de fade in e fade out contínuos. É provável que a casa dos Rose esteja suspensa no meio do tempo. A neblina e a neve sobressaem no horizonte. O campo de milho e o de abóboras perderam a vitalidade que os fizera crescer. Quando o médico bate à porta da casa, não há qualquer sinal de movimento que venha do interior. Dir-se-ia que está desprovida das capacidades funcionais que permitem a vida humana, como parte de um cenário que ultrapassa o domínio da experiência e do reconhecível. Cá fora, alguns gatos correm pelo chão para se esconder. Um enxame de vespas zumbe nervoso em volta do ninho. Em determinadas mitologias, atribui-se, tanto aos gatos como aos insectos, um papel fundamental no acesso do mal sobrenatural ao mundo material. A primeira pessoa que o médico observa é o padre responsável pelo exorcismo que, aparentemente, vitimou Emily Rose. Este frente a frente é o ponto de partida para a luta, entre as esferas do racional e do espiritual, que domina todo o filme. A entrada de The Exorcism of Emily Rose lembra a chegada de Ichabod Crane a Sleepy Hollow, no filme de Tim Burton com o mesmo nome e que propõe o mesmo tipo de confronto. É para aí que também nos remetem os campos de milho e os de abóboras.
The Exorcism of Emily Rose (Scott Derrickson, 2005)
Porém, as imagens iniciais são enganadoras pois, antes de mais, The Exorcism of Emily Rose é um clássico drama de tribunal. O padre é acusado de negligência e sujeito a uma acção judicial com fortes repercussões mediáticas que podem ferir tanto a posição da Igreja como a do Ministério Público. Para complexificar o processo, na sua defesa é colocada uma agnóstica e na acusação um crente. Depois dos créditos iniciais, o tribunal passa a ser o palco do teatro onde decorrem os jogos de poder e de sedução que pretendem influenciar a avaliação dos factos que o júri e, por conseguinte, o espectador poderão fazer. É isso que nos cativa num bom drama de tribunal e que The Exorcism of Emily Rose executa de forma superior. Também aqui estão presentes os habituais, e neste caso arrepiantes, flashbacks que retratam o calvário de Emily Rose. Num dos últimos, já perto do fim, voltamos ao exterior da propriedade dos Rose, onde tínhamos começado. E é aí que, entre a neblina, a crente Emily Rose aceita a missão espinhosa que o seu Deus, apelidado de bondoso e amante dos mortais, lhe atribuiu. Recentemente, a propósito de Sinister (2012), o último filme de Scott Derrickson, falávamos de noites mal dormidas. Se isso lhe acontecer e acordar por volta das três da madrugada lembre-se que, tal como sugerido em The Exorcism of Emily Rose, essa é a hora em que todas as forças demoníacas andam à solta. E tenha medo, muito medo. //
Se sempre evitou
ouvir a música dos Sunn 0))) à noite, quando está sozinho em casa, e tinha
vergonha de contar, agora já tem uma óptima desculpa. É que o tema Blood Swamp,
feito em colaboração com os Boris para o celebrado álbum Altar (Southern Lord, 2006),
faz parte da banda sonora de Sinister (2012). Apesar de algumas críticas
negativas que tem recebido, Sinister apresenta-se como uma boa surpresa que poderá
causar alguns dos maiores sustos de 2012. Realizado por Scott Derrickson tem
Ethan Hawke no papel principal e, mesmo com um orçamento modesto, conseguiu uma
entrada directa para o terceiro lugar do box office norte-americano. No mesmo
período, Paranormal Activity 4 (Henry Joost, Ariel Schulman, 2012) conquistava o primeiro lugar. Depois
dos anos do torture porn, dá-se assim uma certa normalização da tendência que se tem manifestado nos
últimos anos: a preferência do público americano pelo terror atmosférico em
detrimento de uma mistura de sangue com sexo.
Ellison Oswalt
(Ethan Hawke) muda-se, juntamente com a família, para uma casa onde os
anteriores residentes, excepto uma das filhas que desaparecera, foram
assassinados. A partir destes acontecimentos, Oswalt conta escrever um livro novo que lhe devolva a popularidade e o dinheiro perdidos. Enquanto se instalam,
encontra no sótão uma caixa com filmes super 8 que, sem mostrarem o autor dos
crimes, documentam os assassinatos de várias famílias, incluindo aquela que
antes vivera naquela casa. A partir daí, a questão que se lhe coloca é saber
quem é que teria filmado aquelas imagens. Enquanto avança no visionamento e
análise das imagens descobre a dita Entidade do Mal - foi este o subtítulo escolhido pelo distribuidor português para o filme - que se alimenta das imagens para
atingir os seus fins. As imagens transformadas em agentes do mal, como portal entre o seu reino e o mundo mortal.
Com Sinister, Scott Derrickson confirma as
expectativas criadas por The Exorcism of Emily Rose (O Exorcismo de Emily Rose, 2005), o filme de
tribunal reinventado a partir de uma perturbadora possessão demoníaca. Se
Jennifer Carpenter (Emily Rose) tinha um desempenho impressivo e que foi
determinante no lançamento da sua carreira – actualmente, podemos segui-la na
série televisiva Dexter (James Manos Jr., 2006– ), como irmã do nosso serial
killer favorito -, Ethan Hawke já nada tem a provar. Mas o que se destaca
em Sinister é o desenho de som e a direcção de arte que são simplesmente
notáveis. Não, não estamos a falar de compositores da moda e de cenários e guarda-roupa
luxuriantes. Trata-se de uma produção de um grande estúdio e, em vez do habitual fogo de
artificio, temos subtileza e eficácia. Os Broadcast também contribuem para a
banda sonora. E até somos brindados com uma menina que pinta como se fosse
discípula de Peter Doig. Ainda anda por aí nalgumas salas de cinema e promete noites mal dormidas. //
American Horror Story : Asylum (Ryan Murphy, Brad Falchuk; 2012)
The world is a filthy place, It's a filthy goddamn horror show. There's so much pain, you know? There's so much ...
Depois de uma campanha intensa de posters, teasers e trailers, acabou de estrear a segunda temporada de American Horror Story (Ryan Murphy, Brad Falchuk; 2011– ), que perdeu todas as personagens e a maior parte dos actores pois o plano dos criadores é que a história não tenha continuidade e mude com o fim da temporada. No ano passado acompanhámos a família Harmon, enquanto se instalava na sua nova casa em Los Angeles. O pai Ben (Dylan McDermott) traíra a mãe Vivien (Connie Britton) e a mudança de cidade apontava para o recomeço da relação. No entanto, não vão estar sozinhos pois a mansão que os acolhe, também conhecida por Murder House, é casa e prisão de vários antigos residentes que por ali morreram. Desde logo, uma velha criada (Frances Conroy) que, apenas para os olhos de Ben, mantém a beleza insinuante da juventude (Alexandra Breckenridge). E um casal de homens (Zachary Quinto e Teddy Sears), responsável pela actual decoração da casa, cujas traições amorosas terminaram em desgraça. Visita frequente e indesejada da casa é uma vizinha (Jessica Lange) que demonstra um grande interesse por tudo o que aí se passa e parece conhecer bem os segredos que a rodeiam. Tate (Evan Peters) é um rapaz perturbado que se torna paciente de Ben e se apaixona pela sua filha Violet (Taissa Farmiga). Entretanto, uma figura vestida de latex preto, que parece decalcada de O Fantasma (2000) de João Pedro Rodrigues, começa a circular pela casa. American Horror Story foi nomeada para os prémios mais prestigiados da indústria televisiva norte-americana. Ganhou poucos, mas houve uma categoria em que foi imbatível e com todo o mérito: a de melhor actriz secundária para Jessica Lange.
O criador Ryan Murphy - mais conhecido por Nip/Tuck (2003–2010) e Glee (2009– ) - não trabalha regularmente dentro do género de terror pelo que American Horror Story não poderia ser uma série convencional. Como ponto de partida toma a casa assombrada, tal como a conhecemos de filmes como The Amityville Horror (Stuart Rosenberg, 1979), House (Steve Miner, 1986) ou Poltergeist (Tobe Hooper, 1982). Pelo meio pisca o olho a Rosemary’s Baby (Roman Polanski, 1968). Há terror, sustos e gore, o quanto baste. Mas o que nos faz agarrar verdadeiramente ao ecrã é a solidão dos adolescentes. Por via dos seus pecados são condenados a permanecer eternamente jovens e a vampirizar a existência dos novos habitantes da casa. Apetece repetir as palavras que Tate dirige a Violet: The world is a filthy place, there's so much pain, you know? Na internet abundam os videoclipes alternativos feitos para sucessos da música popular, a partir das imagens de Tate e Violet. Que mais não fosse, a primeira temporada de American Horror Story prova que ainda é possível fazer comover e chorar com uma boa história de terror.
American Horror Story : Asylum (Ryan Murphy, Brad Falchuk; 2012)
Welcome to Briarcliff, assim se chama o primeiro episódio da presente temporada de American Horror Story, subintitulada de Asylum. Criado para tratar doentes de tuberculose, Briarcliff Manor foi adquirido pela Igreja Católica, em 1962, para ser transformado num asilo para criminosos com doenças mentais. A Irmã Jude (Jessica Lange) é colocada na direcção. Usa lingerie vermelha por baixo do hábito e gosta de punir os infractores com vergastadas no rabo. Entende que os distúrbios mentais são uma desculpa para o pecado e que cada doente é apenas vítima da sua luxúria. A sua colega de trabalho, a Irmã Mary Eunice (Lily Rabe), larga a pose austera depois de ser possuída por um demónio. O médico de serviço, o Dr. Arden (James Cromwell), é um presumível criminoso nazi. Nos doentes há um cardápio recheado com as "anormalidades" da época: uma lésbica (Sarah Paulson) cuja amante autoriza o seu internamento quando sujeita a chantagem; um James Dean copycat (Evan Peters), tal como o caracteriza a Irmã Jude, que, depois de exposto a pressões racistas, mata a mulher negra e culpa extraterrestres pelo sucedido; Bloody Face, um assassino de quem não se sabe a identidade pois usa a pele da cara das vítimas como máscara; Shelley the Nymphomaniac (Chloë Sevigny), considerada demente pelo marido depois de ter cometido adultério com um bando de marinheiros; uma rapariga (Lizzie Brocheré) que, depois de anos de abuso sexual por parte do pai, assassina toda a familia; a famosa Anne Frank (Franka Potente), que afinal não teria morrido num campo de concentração; e muito mais prometem os próximos episódios. Paralelamente, decorre uma história passada na actualidade, em que um casal, em lua de mel e num roteiro de fantasias sexuais pelos sítios mais assombrados da América, visita o asilo, agora em ruínas, e dá de caras com Bloody Face. Tudo isto é temperado com música pop da época e bandas sonoras de filmes de terror. Mesmo tendo em conta o vigor da produção televisiva, não é fácil juntar um naipe de actores tão bom como o de American Horror Story: Asylum. Quando chegar o anúncio dos prémios anuais, Jessica Lange reúne condições para arrasar novamente toda a concorrência. James Cromwell perfila-se como um bom candidato. Quanto a Evan Peters continua seguro a construir a carreira. Um dia vai ser grande.
Também American Horror Story: Asylum tem referências obvias a clássicos de terror. Freaks (Tod Browning, 1932), The Exorcist (William Friedkin, 1973), Halloween (John Carpenter, 1978) e Friday the 13th (Sean S. Cunningham, 1980) são apenas alguns dos exemplos onde os criadores foram procurar inspiração para acompanhar o espectador, entre a ciência e a religião, num percurso sinuoso pelos limites da (in)sanidade. Parece demasiada esquisitice para explorar convenientemente em doze episódios. A acção, viciosa e viciante, decorre de forma vertiginosa. Mas, tal como na primeira temporada, contamos que, no final, todas as peças encaixem serenamente no puzzle complexo e sedutor que Ryan Murphy e Brad Falchuk nos oferecem. //
Enquanto a renovação da Hammer marca passo com The Woman in Black (James Watkins, 2012) e Wake Wood (David Keating, 2011), vale a pena olhar para Twins of Evil (As Servas de Drácula, 1971) de John Hough. Uma obra pouco conhecida, merecedora da maior atenção e que em Julho foi lançada em DVD e Blu-ray pela Synapse Films. Para além dos habituais extras - imagens, música e uma cena não incluída na versão final -, a edição inclui dois documentários. Em The Flesh and The Fury: X-Posing Twins of Evil, durante cerca de oitenta minutos, o filme é posicionado na história da Hammer e no contexto social em que foi produzido. Inclui entrevistas ao realizador Joe Dante e ao influente Tim Lucas, crítico e editor da revista Video Watchdog. The Props That Hammer Built: The Kinsey Collection é um curto documentário em que Wayne Kinsey mostra a sua colecção de adereços, assinalando a importância que os mesmos tiveram na afirmação da Hammer como a Casa do Terror. Twins of Evil é o terceiro filme da Karnstein Trilogy, baseada na personagem Carmilla, criada em 1872 por Joseph Thomas Sheridan Le Fanu, para a novela com o mesmo nome. De Jean Rollin a Jess Franco, Carmilla foi uma grande fonte de inspiração na criação de vampiros do sexo feminino no cinema. Mas Twins of Evil não é uma adaptação directa da obra de Le Fanu pois a Mircalla Karnstein, reencarnada em Carmilla na novela, são concedidos apenas alguns minutos da trama. O destaque é dado às gémeas Maria (Mary Collinson) e Frieda (Madeleine Collinson), que, depois da morte dos pais, viajam de Veneza para Karnstein para serem adoptadas pelo tio Gustav Weil (Peter Cushing), líder de uma terrível irmandade responsável pela captura e morte de bruxas e de outros supostos seguidores do diabo. O conde de Karnstein (Damien Thomas), invocando o demo, ressuscita Mircalla (Katya Wyeth) e com a sua ajuda é transformado em vampiro. Uma das gémeas, Frieda, entediada com o isolamento que vive na aldeia, procura a companhia do conde, que a seduz e secretamente transforma em vampira. One uses her beauty for love! One uses her lure for blood. Which is the virgin? Which is the vampire?
A Karnstein Trilogy é uma resposta dos estúdios Hammer ao esgotamento dos filmes protagonizados por Dracula e também à mudança de costumes no que diz respeito à utilização do sexo e da violência no panorama audiovisual da época. Desde o primeiro filme na Hammer e ao longo das sucessivas releituras, Dracula - interpretado por Christopher Lee - largara um certo ar romântico e acentuara a frieza e o sadismo. Em Dracula: Prince of Darkness (Terence Fisher, 1966), o conde não profere uma única palavra, bastando a sua figura aterradora. Scars of Dracula (Roy Ward Baker, 1970) marca o ponto mais alto na violência, até essa data. Mas os resultados críticos e de público tornavam-se desanimadores. A introdução de mulheres libidinosas e com orientações lésbicas foi a estratégia que o estúdio estabeleceu para revitalizar o género. Primeiro com The Vampire Lovers (Roy Ward Baker, 1970) e depois com Lust for a Vampire (Jimmy Sangster, 1971), ambos em torno da tentadora vampira Carmilla. No filme seguinte, Twins of Evil, a novidade recai no protagonismo entregue a duas irmãs gémeas, numa bela imagem do bem e do mal. Enquanto Maria aceita resignada a realidade que o tio lhe impõe, Frieda oferece a alma ao diabo e não se coíbe em condenar a irmã à morte. As irmãs Collinson chegam à Hammer depois de terem posado nuas para as páginas da Playboy, como Playmates do mês. Desenganem-se, desde logo, aqueles que procurarem Twins of Evil por este aspecto pois é muito comedido nas cenas de nudez (ou lésbicas), quando comparado com os outros dois filmes da série. A Hammer introduziu a nudez em The Vampire Lovers e, a partir daí, tornar-se-ia em algo vulgar nos filmes do estúdio. Algum pudor nas cenas de sexo também se perdera com o tempo, mas mantendo-se sempre dentro do socialmente aceitável e sob a vigia do British Board of Film Classification. Isto obrigava ao uso de subtilezas - algumas muito pouco subtis - que criam apontamentos camp, como no plano de Twins of Evil em que vemos a mão de Mircalla a agarrar-se a um candelabro quando, fora de campo, está deitada na cama com o conde. Na Karnstein Trilogy, há regras importantes da mitologia vampírica que assumem outras formas. Uma delas, a possibilidade de os vampiros caminharem sob a luz solar, provoca incerteza no espectador quanto à definição das personagens e alterações dramáticas significativas na relação dos vampiros com os mortais. Os dentes também aumentam de tamanho, acentuando a pose grotesca.
Em Twins of Evil, o papel do principal vampiro cabe a Damien Thomas e não a Christopher Lee, como habitualmente no estúdio. Por esta altura, Lee desempenhava o papel de Dracula para outras produtoras, como em Count Dracula (1970) de Jess Franco. Na figura do seu grande rival continua o eterno Peter Cushing, embora o papel deste fuja à norma instituída pelos filmes em que interpreta Van Helsing. Gustav Weil é o grande opositor dos vampiros mas o seu fanatismo leva a que, numa perseguição implacável, condene à fogueira muitas mulheres, inocentemente, acusadas de bruxaria. Maria e Frieda são o verso e o reverso de uma mesma moeda. O bem e o mal. E, enquanto as outras personagens também podem ser colocadas apenas num desses campos, Weil encarna uma dualidade que interpela o espectador. Duas realidades que parecem inconciliáveis nas outras personagens, encontram nele corpo e alma para uma expressão perfeita. Peter Cushing, a quem tinha falecido recentemente a mulher de forma trágica, empresta à personagem um semblante severo que reforça a crueldade das suas acções e que o aproxima do assumido vilão do filme, o conde de Karnstein. É um grande papel da longa carreira de Cushing.
Se Twins of Evil assume uma vontade de renovação, também partilha toda a carga gótica que associamos ao estúdio. Continuam as passagens oníricas pela floresta mas alguns cenários são ainda mais negros que o habitual. No castelo do conde há caveiras incrustadas nas paredes e estátuas com chifres. O realizador John Hough, no que diz respeito ao trabalho na Hammer, não tem a fama de Terence Fisher ou Roy Ward Baker. Ficaria mais popular pela direcção de The Legend of Hell House (1973). Mas merece o devido reconhecimento. Twins of Evil é o último grande filme de vampiros da Hammer e um dos melhores da sua história. Quanto a Dracula, antes do falso toque de finados do estúdio, ainda teria tempo para três excentricidades. Dracula A.D. 1972 (Alan Gibson, 1972) e The Satanic Rites of Dracula (Alan Gibson, 1973) representam duas aventuras na swinging London. The Legend of the 7 Golden Vampires (Roy Ward Baker, Cheh Chang, 1974) é o casamento improvável da Hammer com a mítica Shaw Brothers, numa mistura, invulgar para a época, de terror e artes marciais. //
Outubro é o mês do Doclisboa, que nesta edição programa um dos acontecimentos cinematográficos do ano: a retrospectiva integral da obra de Chantal Akerman. Nascida na Bélgica e influenciada pela vanguarda francesa da década de 1960, foi Pierrot le fou (1965) de Jean-Luc Godard que a levou a tomar a decisão de seguir o caminho de cineasta. Depois de realizar o seu primeiro filme, Saute ma ville (1968), mudou-se para a América onde privou com as experiências dos cineastas independentes locais: Jonas Mekas, Michael Snow e Andy Warhol, e onde conheceu a directora de fotografia Babette Mangolte, que se tornaria uma das suas colaboradoras habituais. Em Nova Iorque realizou filmes experimentais e vagueou pela cidade, por percursos que retomaria anos mais tarde quando regressou para recolher imagens para News from Home (1977), um dos seus filmes mais importantes. O dispositivo do filme é extremamente simples. Planos longos do desenho urbano e das pessoas enquanto, em voz off, Ackerman lê cartas que a mãe lhe enviara durante o período em que a realizadora aí vivera. Por esta altura já Akerman era uma autora prestigiada devido ao sucesso critico de Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975). Deste podemos afirmar, com toda a segurança, que é um dos filmes mais importantes da história do cinema. Chantal Akerman, pela formação europeia e pelas descobertas na América, encontrava-se numa posição privilegiada para fundir as vanguardas dos dois continentes. Durante as décadas de 1960 e 1970, estes dois movimentos pretendiam despertar no espectador uma percepção das especificidades do cinema, que pudesse desmontar as características ilusionistas dos filmes clássicos de Hollywood. Se os europeus se debruçavam sobre os meios normativos com os quais o cinema organizava a narrativa e a criação de significado, aos americanos interessava questionar a especificidade do filme como medium e as suas inerentes propriedades espaciais e temporais.
Nada em Jeanne Dielman é convencional. É todo um programa que interroga e radicaliza os processos de edição, a posição da câmara, o som e a construção narrativa. Durante mais de duzentos minutos, a protagonista (Delphine Seyrig) - da qual sabemos o nome a partir do título do filme -, sucessivamente, repete as actividades relacionadas com o seu trabalho caseiro. Pela tarde prostitui-se, recebendo homens em casa. O dinheiro que recebe guarda-o numa taça situada na mesa da sala de jantar. Perto do final mata um dos clientes. Segundo Tsvetan Todorov, num modelo clássico de enredo, começamos por ter um momento de equilíbrio, que é sujeito a uma ruptura e que no final volta a uma situação de equilíbrio, mas diferente daquela que existia no início. Algo falha quando aplicamos este modelo a Jeanne Dielman. A meio do filme pressentimos que aconteceu uma rotura, dadas as alterações na composição da rotina, mas, embora possamos especular, não chegamos a conhecer o evento que a espoletou. Percebemos apenas que, todas as tarefas que antes eram executadas meticulosamente, passam a conhecer sucessivas perturbações na ordem que as sustentava. Também no fim do filme, não chega a haver uma resolução do problema mas sim uma intensificação do estado de desequilibro. Segundo o crítico Jonathan Rosenbaum, o momento final é apenas uma tentativa para dar uma conclusão ao filme, o que sugere que são bem mais significativos os eventos das três horas (do filme) que o precederam. A câmara capta a rotina com longos planos fixos que nos obrigam a seguir cada actividade na sua totalidade. Pontualmente, dão-se cortes a meio de uma acção que, se são algo corrente num filme convencional, aqui têm como função provocar a consciência do espectador. A rigidez na posição da câmara resulta num dos elementos centrais, e talvez mais radicais, do filme. Segundo Ackerman: The way I looked at was going on as a look of love and respect ... I let her live her life in the middle of the frame. I didn’t go in too close ... The framing was meant to respect the space, her, and her gestures within it. Há quem não deixe de confrontar a posição de Ackerman em relação a Jeanne Dielman com a de Dreyer em relação a Jeanne d'Arc. Enquanto Dreyer utiliza o close up para eliminar a realidade material e o desapego de Jeanne em relação às questões deste mundo, Ackerman evita o close up para evidenciar a ligação plena da sua Jeanne às preocupações mundanas. Também o som oferece uma relação com a imagem diferente daquela a que estamos habituados. Exemplo disso é a "visibilidade" que é dada ao ruído provocado pelo gás na cozinha, que se ouve como se o fogão estivesse perto da câmara.
Chantal Akerman quer ser uma autora livre. Experimentou variados géneros cinematográficos e não gosta de ser arrumada em prateleiras. Tanto que recusou a participação de filmes seus em festivais ligados à temática queer. Porém, a sua recusa em ser catalogada não impediu que os estudos feministas dissecassem, até à exaustão, os seus filmes. Da retrospectiva que agora se apresenta gostaríamos ainda de mencionar dois filmes notáveis, ambos mais recentes e onde o lado documental é evidenciado - D'Est (1993) e De l'autre côté (2002). Uma recomendação final para a sua ultima grande ficção, La captive (2000), uma assombrosa leitura pessoal de À la recherche du temps perdu de Proust.
A completar a passagem de Chantal Akerman por Lisboa serão apresentadas várias obras que a autora concebeu para espaços expositivos - prosseguindo a estratégia que o Doclisboa iniciou no ano passado com o caso exemplar do artista/cineasta Harun Farocki. Esta faceta de Akerman não é nova pois, desde há muitos anos, que cria novos projectos ou reconfigura filmes seus para serem apresentados nestas circunstâncias. Pelos exemplos que temos visto, a passagem de Akerman da sala de cinema para a galeria ou museu não tem criado resultados suficientemente estimulantes na criação de significado ou complexificação do universo da autora. O mesmo poderíamos dizer de Pedro Costa, do qual o Doclisboa também apresentará algumas obras criadas para este tipo de contexto. Sabemos que a nossa opinião não é unânime e até pode parecer reaccionária, mas é no escuro da sala de cinema que os queremos ver. //
Living Doll, episódio de The Twilight Zone (Rod Serling, 1959–1964)
Para a sua participação no The Ed Sullivan Show (1948–1971), os The Rolling Stones não foram autorizados a interpretar o tema Let's Spend the Night Together. O apresentador do programa chegou mesmo a informar Mick Jagger que either the song goes or you go. Como solução de compromisso, o grupo acordou em alterar parte da letra e o nome da canção para Let's Spend Some Time Together, atenuando a sugestão da casualidade do encontro que era referido no tema original. Ainda assim, a coisa não correu bem pois, durante a emissão, Jagger revirava os olhos sempre que cantava a parte da letra que fora forçado a modificar e Ed Sullivan, com receio dos fundamentalistas religiosos, comunicou que os The Rolling Stones nunca mais voltariam a pisar o palco do programa. The Ed Sullivan Show era um dos programas mais populares da televisão. A participação dos The Beatles no programa (1964) foi, até à transmissão da chegada do homem à Lua (1969), o momento de maior audiência da televisão norte-americana. Outro evento que causou grande furor aconteceu com a actuação de Elvis Presley, em que as câmaras mantinham os planos acima da sua cintura, de forma a que os provocantes jogos de anca não ofendessem os espectadores. Se, inicialmente, a televisão parecia revelar-se apenas como a rádio acrescentada de imagem, com o tempo, o seu alcance resultou ser muito maior. Nos anos que se seguiram a 1950, a televisão tornou-se no grande centro de entretenimento das casas americanas. A estrelas populares dos "dias da rádio", que se transferiram para a televisão, juntaram-se outras figuras como Lucille Ball, protagonista da popular comédia semanal I Love Lucy (Jess Oppenheimer, Madelyn Davis, Bob Carroll, Jr. ; 1951–1957). Mas, nesta altura, os programas de variedades eram parte importante da programação e foram eles que foram responsáveis pela primeira apresentação ao grande público dos ícones da música popular do século XX. Por isso, os "infames" The Rolling Stones, em troca de um momento de grande exposição mediática e conscientes do poder visual que a televisão oferecia, primeiro, aceitaram alterar uma canção e, depois, concentraram-se na transgressividade da performance. Menos sorte teria Elvis, pois é mais fácil não filmar quadris do que caras.
Entre 1949 e 1960, graças aos apoios das grandes empresas, foram as séries dramáticas que impuseram de forma definitiva o que ficou conhecido como a idade de ouro da televisão. O desenvolvimento económico do pós-guerra e a estabilidade financeira das famílias levou ao aparecimento de uma estimável massa de população suburbana ávida de consumir as novidades da vida moderna. As séries televisivas surgiam como o meio preferencial para as marcas apresentarem os seus produtos às audiências nacionais. No entanto, se, por um lado, isto permitia a mobilização de recursos financeiros significativos para a produção televisiva, por outro, entregava um grande poder de influência a essas empresas que determinavam os assuntos relevantes a ser explorados pelas séries e que poderiam beneficiar as suas campanhas publicitarias. Temas políticos e sociais problemáticos - "doenças" sociais como a homossexualidade, a toxicodependência, o comunismo, a discriminação racial ou a pobreza estrutural - eram altamente desaconselhados pelos sponsors, mesmo quando fossem apenas sugeridos. A ter em conta seriam os valores, aparentemente positivos, promovidos pela classe média. Para a manutenção deste controlo criativo ajudou ainda, em grande medida, o período de guerra-fria que se vivia e a campanha do senador Joseph McCarthy (McCarthyism). Tudo isto não impediu que surgissem séries verdadeiramente revolucionarias, quer nos temas ou nas formas narrativas com que que eram abordados (mesmo os ditos proibidos, recorrendo à metáfora) - Alfred Hitchcock Presents (Alfred Hitchcock, 1955–1962), The Twilight Zone (Rod Serling, 1959–1964) e The Outer Limits (Leslie Stevens, 1963–1965) são apenas alguns dos exemplos, que se prolongaram por várias temporadas. Estas séries deixaram de ser emitidas em directo - um formato que, por condicionantes técnicas, foi privilegiado no inicio deste período - e vão dar trabalho a realizadores que conhecemos melhor do cinema (Alfred Hitchcock, John Frankenheimer, Robert Altman, Sidney Lumet ou Sidney Pollack). Também jovens futuras estrelas planetárias (Marlon Brando, Paul Newman ou Steve McQueen), estrelas esquecidas por Hollywood (Gloria Swanson ou Robert Montgomery ) e argumentistas talentosos (Rod Serling, Paddy Chayevsky, Gore Vidal, Reginald Rose ou Tad Mosel) emprestaram a sua criatividade a marcantes trabalhos originais e adaptações que as gerações actuais, apenas por desconhecimento ou amnésia, podem deixar de considerar. As revoluções sociais da década de 1960, o aparecimento do vídeo e o ressurgimento de Hollywood como palco privilegiado de experimentação levaram ao declínio da produção televisiva dramática, apesar de alguns exemplos notáveis que foram exibidos nas décadas que se seguiram - entre elas The Fugitive (Roy Huggins, 1963–1967), Dark Shadows (Dan Curtis, 1966–1971), Hill Street Blues (Steven Bochco, Michael Kozoll; 1981–1987) e Moonlighting (Glenn Gordon Caron, 1985–1989).
Alfred Hitchcock Presents (Alfred Hitchcock, 1955–1962), abertura
O inicio da década de 1970, apesar das contrariedades financeiras da indústria de Hollywood, em parte originadas pela ascensão da televisão e o afastamento dos grandes autores clássicos, correspondeu ao começo de uma época criativa potenciada pela diminuição das restrições no uso da linguagem, no conteúdo adulto, na sexualidade e na violência. O colapso do sistema implementado pelos grandes estúdios deu lugar a um período de novas possibilidades e riscos estéticos levados a cabo pelo grupo dos movie brats, muito influenciados pelo trabalho das novas vagas de realizadores franceses e italianos. O risco não pôs em causa o sucesso comercial, com o aparecimento de alguns dos mais rentáveis filmes até essa data: The Godfather (Francis Ford Coppola, 1972), The Exorcist (William Friedkin, 1973), Jaws (Steven Spielberg, 1975), Close Encounters of the Third Kind (Steven Spielberg, 1977) e a trilogia Star Wars (George Lucas, 1977-1983), todos realizados por cineastas jovens. E assim nasceu o conceito de blockbuster: cinema de género produzido com recursos financeiros muito elevados e aliado a maquinas perfeitas de promoção e distribuição. Se os movie brats salvaram Hollywood, perversamente, e tal como Peter Biskind escreve em Easy Riders, Raging Bulls: How the Sex-Drugs-And Rock 'N Roll Generation Saved Hollywood, levaram a que os inesperados resultados comerciais tivessem fascinado os donos dos estúdios, a procurarem um novo Jaws a cada lançamento e a porem de lado a postura desafiadora dos autores, em favor dos mínimos denominadores comuns do mercado. Com uma ou outra nuance, este modelo de produção manteve-se até aos dias de hoje.
Ainda durante a década de 1970, os estúdios de cinema passaram a incluir a televisão como meio de promoção dos filmes e foi lançado o primeiro canal televisivo pago, a HBO (Home Box Office), que se tornaria muitos anos mais tarde num dos mais importantes centros de produção televisiva. Mas foi necessário chegar à década de 1990 para o mundo do cinema, incrédulo, ser abalado por um dos grandes sobressaltos da história da televisão. Em 8 de Abril de 1990, uma pergunta ficou na boca de toda a gente: quem matou Laura Palmer?. Um homem vindo do cinema, David Lynch, criou, juntamente com Mark Frost, Twin Peaks (1990–1991), um ovni que ficou para a história como uma das mais importantes séries feitas para televisão. Muita gente considerou, não desprovida de alguma razão pois aguentou apenas duas temporadas, que o pequeno ecrã era desajustado para tamanha bizarria. O grande público desinteressou-se, mas Twin Peaks e logo de seguida The X-Files (Chris Carter, 1993–2002) demonstraram que a televisão poderia ser uma resposta certeira à infantilização de Hollywood e do blockbuster. Os canais por cabo, nomeadamente a HBO, sem a pressão da opinião publica conservadora, passaram a investir em temas adultos despreocupados com a violência ou o sexo, pelo que se instalou a ideia que, embora injusta, o cinema de Hollywood dirigia-se a um público adolescente e as séries televisivas a um adulto. Um dos slogans de promoção do canal referia mesmo: It's not TV. It's HBO. Convém notar que a HBO também iniciou a produção de obras para serem apresentadas no circuito clássico de distribuição do cinema - são os casos de Elephant (Gus Van Sant, 2003) ou American Splendor (Shari Springer Berman, Robert Pulcini; 2003).
O lançamento de The Sopranos (David Chase, 1999–2007) - cujo modelo cinematográfico é The Godfather e segue a história inesperada de um padrinho mafioso que tem de recorrer a uma psicóloga para enfrentar os problemas na família e nos negócios - na HBO marca, definitivamente, o renascimento da idade de ouro das séries televisivas, não só pela sua qualidade excepcional mas também pela maturidade de muitas outras produções que acompanharam o início da sua transmissão: Oz (Tom Fontana, 1997–2003), The West Wing (Aaron Sorkin, 1999–2006), CSI: Crime Scene Investigation (Ann Donahue, Anthony E. Zuiker; 2000- ), 24 (Robert Cochran, Joel Surnow; 2001–2010), Alias (J.J. Abrams, 2001–2006), Six Feet Under (Alan Ball, 2001–2005) e The Wire (David Simon, 2002–2008); ou das que se seguiram: Battlestar Galactica (Ronald D. Moore, 2004–2009), Lost (J.J. Abrams, Jeffrey Lieber, Damon Lindelof; 2004–2010), Dexter (James Manos, Jr., 2006– ), Mad Men (Matthew Weiner, 2007– ), Damages (Glenn Kessler, Todd A. Kessler, Daniel Zelman; 2007– ), True Blood (Alan Ball, 2008– ), The Good Wife (Michelle King, Robert King; 2009– ), Boardwalk Empire (Terence Winter, 2010– ), The Walking Death (Frank Darabont, 2010– ), Homeland ( Howard Gordon, Alex Gansa; 2011– ), The Killing (2011– ), Game of Thrones (David Benioff, D.B. Weiss; 2011– ), Mildred Pierce (Todd Haynes, 2011) e American Horror Story (Ryan Murphy, Brad Falchuk; 2011– ). Muitos destes casos prologaram-se por inúmeras temporadas, algumas com cerca de uma década de exibição, que fazem inveja a grande parte dos filmes de Hollywood, com dificuldades evidentes na gestão das habituais duas horas de duração. No elenco, já não estão apenas os jovens promissores ou as estrelas em decadência, mas sim também actores em topo de carreira (Glenn Close em Damages, Kate Winslet em Mildred Pierce, Steve Buscemi em Boardwalk Empire, Kiefer Sutherland em 24 ou Jessica Lange em American Horror Story). No intervalo da sua carreira cinematográfica, também realizadores de primeira grandeza assumem a direccão: Todd Haynes (Mildred Pierce) ou Martin Scorsese (Boardwalk Empire). Os géneros são extremamente variados e podem ir dos clássicos dramas de tribunal, à ficção científica ou ao terror carregado de gore. São descomplexadas e sem a dose habitual de açúcar e indigência que o cinema na sua forma industrial promove. Por isso, dá que pensar, como é que um realizador desinteressante como Stephen Hopkins, não só concebeu o aliciante dispositivo formal como conseguiu resultados admiráveis na realização para a primeira temporada de 24, mesmo tratando-se de uma série possuidora de uma energia dramática frenética muito particular e que poderia resultar difícil de equilibrar. Ou como J. J. Abrams, na organização narrativa, em grande parte das suas incursões cinematográficas fica aquém do que lhe conhecemos da televisão (Alias e Lost). Por outro lado, não surpreende que The Sopranos fosse inicialmente escrito como um projecto para cinema, ao qual todos os grandes estúdios responderam negativamente.
Apesar das somas avultadas e crescentes que são investidas nestas séries, os seus modelos de produção assemelham-se àqueles que rodeavam o cinema de série B: rapidez nas filmagens e o importante papel que cabe ao argumentista e ao produtor no desenho final do produto. Não se pense, contudo, que elas derivam directamente do cinema. Há características inerentes ao meio televisivo que as diferenciam do cinema: desde logo o constrangimento do pequeno ecrã, mas também a duração e a relação que estabelecem com o espectador. De episódio para episódio e de temporada para temporada. De semana para semana e de ano para ano. Em resumo, entre o cinema e a televisão, numa junção que parece perfeita.
Há quem não tenha paciência para séries de televisão e que desespere quando os enredos se prolongam por intermináveis temporadas. Mas nós não as dispensamos e ficamos sempre expectantes relativamente às rentrées do Outono e da Primavera. Nos próximos meses, vamos passar muito do nosso tempo a acompanhar algumas das nossas favoritas. Por isso, no there's something out there vamos espreitar duas, ainda nas primeiras temporadas e que são absolutamente imprescindíveis - American Horror Story e The Walking Death -, uma histórica que procura renovar-se - Dexter - e outra que estreou agora e já mostrou algumas potencialidades - 666 Park Avenue (David Wilcox, 2012– ). // Link para American Horror Story: Asylum
The Human Centipede II (Full Sequence) (Tom Six, 2011)
Em Lisboa, o MOTELx é uma das raras oportunidades para ver filmes de terror de qualidade numa sala de cinema. Olhando para a lista de filmes exibidos nas anteriores edições, não podemos deixar de registar que por aí passaram alguns dos filmes que marcaram a actualidade do cinema de terror dos últimos anos. Basta pensar que o filme mais marcante de 2011 foi exibido na edição anterior: The Woman (2011) de Lucky McKee. Nesta sexta edição, Dario Argento é um nome sonante e, como seria de esperar, recolhe as atenções mediáticas. Não tivesse existido Mario Bava e Argento seria o nome maior do cinema fantástico europeu. Assim, resta-lhe o lugar de digno, e também grande, sucessor de Bava. A sua cinematografia é longa, de onde sobressaem meia dúzia de obras-primas que ficariam bem em qualquer lista dos melhores filmes de terror de todos os tempos. Ainda assim, uma delas destaca-se: Suspiria (1977). Obra inigualável, pela declaração de amor que faz ao excesso e pela genialidade na encenação. Um must para quem não teve ainda a oportunidade de o ver em sala e deliciar-se com as cores vibrantes e a fascinante música dos Goblin. Para completar o destaque, o MOTELx exibirá mais três obras realizadas por Argento e uma outra para a qual co-escreveu o argumento e produziu. Profondo rosso (1975) e Inferno (1980) fazem parte do pequeno grupo de obras-primas de que falámos. Sobre Inferno paira o fantasma de Mario Bava, que desenhou os cenários, criou efeitos e realizou algumas das cenas, devido a uma doença súbita que atacou Argento. La terza madre (2007) é o final da Trilogia delle Tre Madri, iniciada com Suspiria e Inferno. Infelizmente, neste caso o resultado é fraco quando comparado com companhia tão nobre e vem apenas reafirmar o esgotamento que o trabalho de Argento atingiu nos últimos anos. Tendo uma obra tão longa e rica, não se percebe a inclusão de Dèmoni (1985) neste pequeno ciclo, a não ser pelo facto de ter sido realizado por Lamberto Bava, filho de Mario Bava, e com isto vir acentuar, ainda mais, a paternidade que o mestre italiano exerce sobre o cinema do homenageado. Com muita pena nossa, fica de fora Phenomena (1985) que, também filmado na Suíça e com algumas semelhanças na história, forma uma bela dupla com Suspiria e tem um dos começos mais belos, e já agora arrepiantes, do cinema de Argento. Outros pontos a reter na presente edição, para além de Livide que já aqui abordámos, são os filmes do importante realizador japonês Nobuo Nakagawa, The Pact (de Nicholas McCarthy, vem de Sundance, vai passar por Sitges; aparentemente modesto, sem grandes efeitos, mas muito assustador), V/H/S (outro de Sundance; do género found footage, produzido por Brad Miska, do site Bloody Disgusting, e dirigido por vários realizadores, incluindo Ti West, um dos nossos favoritos, e Adam Wingard, autor do muito esperado You're Next), The Tall Man (Pascal Laugier na América, depois de Martyrs, numa desilusão, com muitas voltas no argumento e que demora demasiado tempo a afirmar-se) e Red State (Prémio de Melhor Filme no Sitges 2011; Kevin Smith promete muito, para acabar num espalhanço).
The Human Centipede II (Full Sequence) (Tom Six, 2011)
Mas o grande acontecimento do MOTELx de 2012 será a apresentação ao público português de The Human Centipede II (Full Sequence) (2011), de Tom Six. Segunda parte de uma trilogia iniciada com The Human Centipede (First Sequence) (2009) e que concluirá com The Human Centipede III (Final Sequence), um novo filme ainda em produção. Não é fácil contar a história que rodeia estes filmes sem desmanchar a seriedade de quem relata. No primeiro filme, um médico alemão, Dr. Heiter (Dieter Laser), põe em pratica estudos científicos que realizou e constrói uma centopeia humana ligando três pessoas, através do ânus e da boca. Com um esquema projectado na parede, o Dr. Heiter explica, assim, o processo digestivo às cobaias forçadas: ingestão de A ... passa para B ... e C executa a excreção. Tal como a promoção do filme refere: 100% medically accurate. Movimentos suaves da câmara conduzem-nos pela casa sofisticada de Heiter. A luz é fria, reforçando o aspecto clínico e higiénico que rodeia a operação de construção do novo espécime. A popularidade e a polémica com que foi recebido o filme levou Tom Six a subir a parada e a lançar-se em The Human Centipede II (Full Sequence). Para formar a centopeia, em vez de três elementos, passamos a ter doze. Ainda em fase de promoção do primeiro filme, já Tom Six avisava que o próximo iria ser mais violento e desafiador. Uma das actrizes referiu que, finalmente, os espectadores iriam ver o sangue e os excrementos que lhes tinham sido ocultados. Chegados a The Human Centipede II (Full Sequence), resta concluir que as promessas foram integralmente cumpridas. Quando comparado com este, parece que o primeiro filme foi realizado por um menino de coro.
Filmado a preto e branco, maioritariamente num parque de estacionamento e numa garagem, quase que cheiramos o ar pestilento dos lugares. Martin (Laurence R. Harvey), vigilante de um parque de estacionamento subterrâneo londrino, sucede a Heiter no lugar de protagonista. De baixa estatura e obeso, vive no desprezo que a sua figura provoca à maior parte das personagens, excepto ao seu médico, a quem desperta fantasias sexuais. Enquanto vigia o parque, Martin assiste, repetidamente e com grande paixão, ao visionamento de The Human Centipede (First Sequence). Criou um álbum de imagens do filme que, deslumbrado, desfolha. Estuda detalhadamente o método de trabalho e copia os diagramas de Heiter. Criar uma nova centopeia humana torna-se para ele um projecto de vida. Na hora da verdade, quando tem de passar da intenção à prática, a desqualificação e a falta de material médico adequado levam a que recorra aos objectos mais próximos, para concluir a tarefa: facas, tesouras, martelos, alicates ou agrafadores. E sem anestesia. Como a promoção também apontou: 100% Medically Inaccurate. O ambiente exigente do Dr. Heiter é substituído por um processo do it yourself, em que o sangue corre, a preto e branco, sem qualquer possibilidade de estancar. Numa das cenas as fezes são projectadas em todas as direcções, mesmo de encontro à câmara. E por instantes, é quebrada a regra do preto e branco. Quando alguém fraqueja devido à crueldade da operação, Martin choraminga, não pela dor que os seus actos provocam, mas por se sentir frustrado com a dificuldade que tem para levar à pratica a proposta de Heiter. É admirável a interpretação de Laurence R. Harvey que, sem soltar uma palavra durante todo o filme, coloca o espectador numa zona de desconforto que pende entre a simpatia e o horror. Uma tensão que se estende às características opressivas do espaço palco da acção e que é reforçada por planos fixos captados a partir do ponto de vista de uma câmara de vigilância. O desenho sonoro, o preto e branco e algumas cenas na casa de Martin remetem-nos para Eraserhead (1977) de David Lynch, um realizador que Six admite como uma das suas influências.
Nos Estados Unidos, quando estreou no Fantastic Fest e como parte da campanha de marketing, a distribuidora IFC Films colocou uma ambulância à porta do cinema e distribuiu sacos de enjoo pelo público. A ambulância não teria sido usada mas, segundo alguns relatos, à saida um espectador teve de receber assistência médica. Ao ser submetido previamente ao British Board of Film Classification (BBFC), para lançamento no Reino Unido, obteve um parecer negativo. Como que prevendo a polémica e dando uma resposta antecipada, no filme, uma das vítimas, quando se dá conta das intenções de Martin, grita desesperada: é um filme ... The Human Centipede é um filme. Ainda no começo, Martin a assistir ao final de The Human Centipede (First Sequence), não é mais que uma imagem do espectador a ver The Human Centipede II (Full Sequence). Uma imagem de nós a vermos, apenas, um filme. Depois de alguns cortes e muita discussão a questionar a autoridade do BBFC quando põe em causa a livre escolha de um público adulto, The Human Centipede II (Full Sequence) acabou por receber a autorização desejada. Neste momento circulam no mercado diferentes versões com cortes. Esperamos que, a cópia que o MOTELx vai exibir nesta edição, esteja intacta. Mesmo nestes tempos de massificação da violência, resulta particularmente difícil ver algumas cenas de The Human Centipede II (Full Sequence), principalmente na segunda parte, onde é posto de lado o fora de campo, que era favorecido na primeira parte e em The Human Centipede (First Sequence). Por momentos, lembramo-nos da reacção que tivemos quando vimos, pela primeira vez, Salò o le Centoventi Giornate di Sodoma (Pier Paolo Pasolini, 1976). Um mundo sem esperança, onde não existe algo, suficientemente firme, em que nos possamos agarrar. Perturbante e radical. //
Sem título, Robert Longo, 1981-87, Carvão, grafite e tinta sobre papel
A carreira de Robert Longo ficou, definitivamente, associada à sua participação na exposição seminal Pictures, que decorreu em 1977 no Artists Space, em Nova Iorque. Com curadoria do influente crítico Douglas Crimp, a exposição compreendia também o trabalho de outros artistas plásticos: Sherrie Levine, Philip Smith, Jack Goldstein e Troy Brauntuch, e propunha novas perspectivas para a arte contemporânea, misturando as artes pop e conceptual, através da apropriação de elementos dos meios de comunicação de massa, uma reacção dos artistas, segundo Crimp, à importância crescente do modo como as imagens – dos jornais, revistas, televisão e cinema – definem a nossa experiência. A etiqueta Pictures Generation foi instituída e alargada a outros artistas que partilhavam o mesmo tipo de abordagem: Barbara Kruger, Cindy Sherman (companheira de Longo, à data), Louise Lawler e Richard Prince, entre os mais conhecidos. Nascidos entre as décadas de 1940 e 1950, estes artistas cresceram numa época próspera - com a massificação do consumo, do fast food e da televisão - mas marcada pela rebeldia social – o rock, o flower power, a cultura Beatnik ou a contestação à guerra do Vietname. Enquanto estudavam arte foram expostos às ideias da arte conceptual e ao questionamento da utilização das técnicas artísticas tradicionais: as ideias substituíam as pinturas e as esculturas. A fotografia, o filme e o vídeo tornaram-se as técnicas privilegiadas destes artistas e as imagens roubadas dos meios de comunicação serviam tanto de inspiração como de matéria prima para os trabalhos. Para um relevo escultórico apresentado na exposição Pictures, Robert Longo partia de um still de um filme de Rainer Werner Fassbinder, Der amerikanische Soldat (The American Soldier, 1970), que vira num jornal, em que um homem, ao ser baleado por trás, arqueava o corpo para a frente e as mãos acompanhavam em movimento o choque provocado pela bala. Ainda segundo Crimp, ao concretizar este momento climáctico, em que um homem é parado por uma bala, Longo cristalizava o momento entre a vida e a morte na estase ambígua de uma imagem – e o estranho resultado era que essa imagem/objecto adquiria a elegância de uma dança. Este trabalho antecipa os desenhos com motivos semelhantes e em grande escala, que realizaria alguns anos mais tarde – a série Men in the Cities. É também nesse formato que realizaria os trabalhos mais conhecidos do grande público e aqueles que são mais facilmente ligados à cultura popular, nomeadamente as séries dos revolvers, dos tubarões e das explosões nucleares. A exposição retrospectiva do artista que em 2010 foi realizada no Museu Colecção Berardo, em Lisboa, se por um lado expunha a empatia imediata que os trabalhos criavam no público, por outro também evidenciava as suas limitações quando eram isolados da sua qualidade técnica e espectacularidade.
Depois de algumas destas obras terem atingido somas astronómicas e de alguns dos artistas, juntamente com outros seus contemporâneos, terem sido a face do boom da arte yuppie, Robert Longo (Johnny Mnemonic, 1995), David Salle (Search and Destroy, 1995), Julian Schnabel (Basquiat, 1996) e Cindy Sherman (Office Killer, 1997) passaram para o outro lado da barricada para trabalhar dentro dos modelos de produção do cinema, ao qual era dirigido anteriormente o seu olhar critico. A ideia de adaptar ao cinema o conto Johnny Mnemonic, da autoria de William Gibson e publicado na antologia Burning Chrome (1986), surgiu quando Longo conheceu o escritor, em finais da década de 1980, e planearam fazer um filme independente com o orçamento de dois milhões de dólares. O modelo de produção que lhes serviria de inspiração seria Alphaville (1965) de Jean-Luc Godard. Gibson ficou encarregue de escrever o argumento e, durante os anos seguintes, procuraram financiamento sem qualquer sucesso até que a Sony Pictures lhes propôs fazer o filme com um orçamento muito superior, vinte e seis milhões de dólares. O interesse da multinacional no projecto surgia no momento da implantação vertiginosa da internet, do interesse crescente pela cultura cyberpunk e pela oportunidade que se abria para utilizar as várias companhias do grupo para produzir produtos que pudessem acompanhar o lançamento do filme. Tal acabaria por acontecer com a edição da banda sonora e de um videojogo.
Study for Johnny Mnemonic - Johnny in Download Helmet, Robert Longo, 1993, Carvão, grafite, giz e marcador sobre pergaminho
Para além da utilização de vídeo e filme em trabalhos destinados a galerias e museus e a realização de alguns telediscos – para os Golden Palominos, New Order e R.E.M., entre outros –, Longo não tinha outra experiência na realização. O facto de Johnny Mnemonic se tratar de uma grande produção da indústria, com pessoal altamente profissionalizado, levou a que, durante a rodagem, ouvisse reparos constantes dos técnicos. Numa entrevista à Newsweek afirmava: there's an incredible assholism in the movie industry. I'm up front with everybody about my limitations ... The woman from continuity said that I broke four basic rules of filmmaking in one scene. Fortunately, the editor was able to cut it so that it came out right. Por outro lado, Longo estava interessado num imaginário sombrio, enquanto Gibson pretendia explorar uma faceta mais cómica. Para a Sony, aproveitando o enorme sucesso de Speed (Jan de Bont, 1994), Keanu Reeves era a estrela ideal que poderia devolver os milhões investidos. Excêntrico é a palavra adequada para definir o restante elenco: Dina Meyer; o rapper Ice-T; a star japonesa Takeshi Kitano; o vocalista da banda punk hardcore Black Flag, Henry Rollins; a cantora e actriz alemã Barbara Sukowa, actualmente casada com Longo; e finalmente o actor de filmes de acção ... Dolph Lundgren, com cabelos compridos, no papel de um pregador e assassino a soldo que invoca frequentemente o nome de Jesus Cristo, do qual tem o visual decalcado. Perante tudo isto, o desastre anunciava-se.
New Century. Age of terminal Capitalism. The armored towers of multinational corporations rise above the ruins of the democracies that gave them birth. Soldiers of the Yakuza defend them. Hackers, data-pirates, lotek media-rebels are the enemy, burrowing like rats in the wall of cyberspace. A new plague convulses the cities: Nerve Attenuation Syndrome, incurable, fatal, epidemic, bringing fear and misery as old as the species itself. But the most precious data is sometimes entrusted to elite private agents, wetwired to funtion as human data banks. Mnemonic couriers. É com estas palavras que começa Johnny Mnemonic e é estabelecido o contexto por onde o "correio" Johnny (Keanu Reeves) terá de se movimentar quando recebe uma última missão, que lhe permitirá juntar dinheiro para recuperar as memórias de infância que lhe tinham sido retiradas quando instalou o dispositivo de armazenamento de informação no cérebro. Por transportar informação relevante de uma poderosa empresa internacional, Johnny acaba perseguido pela Yakuza, por Takahashi (Takeshi Kitano) e por Karl (Dolph Lundgren).
Não foi fácil equilibrar as diferentes sensibilidades que rodearam a produção de Johnny Mnemonic e seguir o caminho sinuoso até à montagem final. Não é por inteiro um filme de artista, um blockbuster ou do género trash. Temos diferentes momentos onde prevalece um dos géneros. Há algumas citações que revelam o conhecimento que Longo tem da arte contemporânea. Uma delas é a coluna feita de televisores alinhados, que remete para a obra do artista Nam June Paik. Outra, menos clara, é a vitrina em que vive o golfinho junkie, que lembra The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living (1991), o tubarão a flutuar em formol de Damien Hirst. Existe uma versão do filme que foi lançada no Japão e que se apresenta como a mais próxima da visão que Longo teria idealizado. São mais cenas e uma edição com algumas diferenças. Uma delas, e que nos agrada bastante, é um destaque maior que é dado a Takeshi Kitano, dada a sua popularidade no mercado nipónico. É também uma das cenas extra que nos dá uma das melhores imagens do filme, em que Kitano está sentado em cima de uma cama, rodeado de imensos peluches, enquanto olha para um holograma da filha já falecida, que interage com ele. Kitano entrega ao filme uma gravidade que dele parecia ausente e um pedaço de melancolia que o cenário retro-futurista bem merecia. É a única personagem em quem verdadeiramente acreditamos (não fora Takeshi Kitano um brilhante actor, realizador e entertainer televisivo). A banda sonora tem uma quota parte da responsabilidade no desequilíbrio de Johnny Mnemonic. Apesar de Robert Longo ter estado envolvido com a vanguarda musical nova-iorquina (Glenn Branca) e de ter feito parte de bandas de música experimental (Menthol Wars e Chatham's Guitar Trio), é frustrante que a banda sonora seja tão desigual e entregue a grupos ligados à Sony ou às suas associadas. Mesmo os momentos musicais que poderiam brilhar pertencem a fases menos interessantes dos músicos ou acabam engolidos pela amálgama sonora - Helmet, U2, Orbital, Rollins Band (de Henry Rollins) ou KMFDM. Isto ressalta ainda mais quando comparamos Johnny Mnemonic com Blade Runner (Ridley Scott, 1982), onde a música de Vangelis, omnipresente e parte plena do ambiente distópico, liga as cenas, incapaz de quebrar o onirismo melancólico - como que a versão sonora do interior das personagens. É verdade que, durante muitos anos, a banda sonora de Blade Runner, talvez pelo percurso do seu principal compositor, parecia-nos colada a uma new age algo boçal, que nos impedia de fruir por inteiro as suas qualidades. Nos últimos anos a new age inspirou, ainda que abordada de uma forma crítica, alguma da boa música que pudemos ouvir, o que nos levou a enxergar o passado através de outras lentes (Dolphins Into the Future, Emeralds, Oneohtrix Point Never). Por esta via, podemos admitir que, em 2012, Blade Runner cresceu - algo que confirmámos quando revimos recentemente o filme, a propósito de Prometheus (Ridley Scott, 2012). A Johnny Mnemonic poderia ter acontecido um processo semelhante se Robert Longo tivesse aguentado as pressões da Sony e tivesse mantido os Black Rain como os responsáveis pela banda sonora do filme.
Now I'm Just A Number: Soundtracks 1994-95, Black Rain (Blackest Ever Black, 2012)
Apesar de a formação dos Black Rain ter sido alterada ao longo do tempo, no centro de decisões estavam Stuart Argabright - membro dos também agora redescobertos Ike Yard, a única banda com um album editado pela Factory America de Tony Wilson - e o músico japonês Shinichi Shimokawa. Argabright é filho de um funcionário do Pentágono, que trabalhou num projecto militar que desenvolvia uma versão preliminar da internet. O facto de ter crescido numa área dos subúrbios de Washington D.C. frequentada maioritariamente por pessoal ligado à CIA, NSA e Pentágono, incentivou-o a reagir à cultura das grandes corporações militares e de segurança norte--americanas. Seguiu para Nova Iorque, onde se envolveu com a fervilhante cena artística local. Jean-Michel Basquiat, Michael Gira dos Swans, Nick Taylor, Allen Ginsberg, Arthur Russell, Richard Hell, a futura estrela planetária Madonna ou Robert Longo também andavam por lá. Stuart Argabright e Shinichi Shimokawa já tinham colaborado juntos no projecto de hip hop Death Comet Crew, quando se reuniram como Black Rain para criar a música para um audio book de Neuromancer, de William Gibson, e para a banda sonora de Johnny Mnemonic.
Em entrevista a Philip Sherburne na Spin, Argabright explicou o processo de trabalho: Shin and I worked at his apartment on Avenue B with a few pieces of gear, pedals. No images had been produced when we did the sounds, but we had the extensive experience of doing the Neuromancer audio book's many scenes only months before, and so we were 'in the mode.' We had extensive Tokyo and Hong Kong experience by then, as well, so we made titles and pictures, then music in our heads straight from the books. No entanto, a Sony colocou de lado a música que os Black Rain estavam a preparar e deu preferência aos artistas que representava. Na versão japonesa constam algumas das faixas dos Black Rain que foram esquecidas e algum tempo depois o material ainda teve uma discreta edição em CD. Já durante a primeira metade deste ano, a editora londrina Blackest Ever Black colocou no mercado Now I'm Just A Number: Soundtracks 1994-95, uma edição de material que os Black Rain compuseram para Neuromancer, Johnny Mnemonic e outros registos. Passados tantos anos é com surpresa que recebemos a frescura da música dos Black Rain e estabelecemos a sua ligação com o actual techno pós-industrial, nomeadamente com alguns projectos que editam na Blackest Ever Black ou na Downwards (Regis, Raime, Sandwell District e Silent Servant). Depois de estas bandas se terem inspirado nos projectos de Stuart Argabright, estão agora a trabalhar em remisturas de músicas suas, tal como aconteceu recentemente com a releitura de Regis para um tema dos Ike Yard. Now I'm Just A Number: Soundtracks 1994-95 é música para cenários pós-apocalípticos. Tem temas que poderiam passar facilmente por uma pista de dança mais alternativa, mas sobretudo é um álbum para dançar com a cabeça. Pelo meio está Night City Tokyo, um longo tema atmosférico com drones ameaçadores, interferências, portas a abrir e a fechar, passos de pessoas, chuva a cair, e vozes imperceptíveis que se repetem e parecem saídas dos anúncios suspensos nos prédios de Blade Runner.
Johnny Mnemonic não é um caso único de desperdício de uma grande banda sonora. Hellraiser (Clive Barker, 1987) também prescindiu da música que o grupo industrial Coil criou propositadamente para o filme. Anos mais tarde os Coil referiram numa entrevista que Clive Barker lhes teria contado que, quando viajava pelos Estados Unidos para a apresentação de livros ou conferências, ficava surpreendido por aparecerem fãs do grupo, com cópias da banda sonora não utilizada, para ele autografar. Nos melhores casos, as bandas sonoras atribuem aos filmes uma individualidade que nos impede de os imaginar desenhados pelo som de outras músicas. O que seria de Hitchcock sem Bernard Herman, Tim Burton sem Danny Elfman ou Dario Argento sem os Goblin? E será que poderíamos ver o Black Lodge, em Twin Peaks (David Lynch, 1990-1991), sem a partitura de Angelo Badalamenti? No entanto, a banda sonora, por si só, não pode ser a salvação de um filme. Tem de agir em sintonia com o elenco, a edição e o argumento de forma a criar ambientes e emoções. Não como suporte, mas como uma verdadeira personagem, um factor integral do filme. E um dia talvez se possa autonomizar das imagens. Johnny Mnemonic precisava da música dos Black Rain. Now I’m Just a Number requer apenas as imagens que cada ouvinte criar na cabeça. //
Enquanto os americanos juntavam os cacos resultantes da guerra de palavras em torno do torture porn, os franceses propunham uma série de filmes a que o crítico James Quandt, num artigo para a revista Artforum, apelidava de New French Extrimity. Bava as much as Bataille, Salo no less than Sade seem the determinants of a cinema suddenly determined to break every taboo, to wade in rivers of viscera and spumes of sperm, to fill each frame with flesh, nubile or gnarled, and subject it to all manner of penetration, mutilation, and defilement, assinalava Quandt, de forma certeira, no artigo. No meio dos autores nomeados - grande parte deles eram nomes queridos da crítica francesa - surgia um jovem cineasta que lançara um filme de terror que se distanciava do formato que associamos ao cinema de autor francês. Falamos de Alexandre Aja e do seu filme Haute tension (2003), um slasher que deixava a milhas a maior parte da concorrência norte-americana da época. Para isso contribuíam muito a segurança de Aja na direcção e os efeitos especiais criados por Giannetto De Rossi, que colaborara habitualmente com Lucio Fulci e também com David Linch para o brilhante desenho futurista de Dune (1984). A Lionsgate (casa das séries Saw e Hostel) acabaria por lançar o filme no mercado norte-americano e o sucesso foi imediato dentro dos círculos do cinema de terror.
Nos anos seguintes, outros títulos franceses marcaram a actualidade do cinema de terror internacional: Ils (David Moreau, Xavier Palud, 2006) , Frontière(s) (Xavier Gens, 2007), À l'intérieur (Alexandre Bustillo, Julien Maury, 2007) e Martyrs (Pascal Laugier, 2008), de tal forma que se começou a falar de um movimento de cinema de terror francês, cuja existência os autores dos filmes negavam. No entanto, para além de os realizadores andarem quase todos na casa dos trinta anos e terem o cinema americano como grande referência, tornava-se evidente que havia temas comuns aos filmes e um contexto social e politico que era referido nas narrativas e que parecia contextualizar as obras. As revoltas de jovens franceses suburbanos foi um tema que marcou a actualidade mediática de 2005 e que coincidiu com a produção de vários desses filmes. Residentes nos subúrbios das grandes cidades e descendentes de comunidades oriundas do norte de África, os jovens foram protagonistas de actos que envolviam o incêndio de carros e de edifícios públicos e pelos quais se manifestavam contra uma França que, enquanto se promovia como a casa da liberdade, igualdade e fraternidade, lhes devolvia um futuro sem esperança e marcado pela discriminação. Uma luta entre a cidade endinheirada e o subúrbio remediado, ao qual era negada qualquer hipótese de integração. Outro acontecimento que os filmes parecem evocar é a ascensão no seio da sociedade francesa de partidos de extrema direita e de ideias a ela associadas. É este o quadro que acaba por ditar um dos grandes temas explorados por estes filmes: o medo da diferença e do Outro. Não acompanhamos a opinião de muitos críticos que acusam os filmes de gratuitidade na forma como exploram a representação da violência, tendo como único objectivo quebrar limites e consequentemente provocar o espectador. No entanto, parece-nos que alguma subtileza seria desejável e que, em alguns momentos, as doses crescentes de violência e histerismo, sonoro e visual, acabam por anestesiar e alienar o espectador.
Tradicionalmente, nos Estados Unidos, o mercado do cinema de terror é um negócio lucrativo. Com alguma regularidade, filmes desta área ocupam lugares cimeiros no box office e estrelas de primeira grandeza encabeçam os elencos. Em França, os filmes americanos conseguem receitas de bilheteira consideráveis que contrastam com os valores modestos ou mesmo fracos que atinge a produção local. Para se ter uma ideia, Paranormal Activity 3 (Henry Joost, Ariel Schulman, 2011) conseguiu 807 464 entradas, enquanto Ils obteve 251 302 e À l'intérieur apenas 70 839 – nem mesmo a presença de Béatrice Dalle neste último conseguiu inverter a tendência. No entanto, se a produção local foi recebida com indiferença em França, também é de notar que suscitou uma atenção enorme nos festivais de cinema de terror e da crítica especializada norte-americana. Uma das razões que pode explicar o interesse por estes filmes nos Estados Unidos, para além da utilização do gore em doses industriais, é a influência que a memória do cinema de terror americano exerce sobre eles. Ao virar de cada cena espreitam, entre muitos outros, os efeitos sonoros e o ambiente bizarro de The Texas Chain Saw Massacre (Tobe Hooper, 1974), a violência gráfica das cenas finais de Carrie (Brian De Palma, 1976) e até mesmo a linha ténue que separa o sobrenatural do real de Jeepers Creepers (Victor Salva, 2001). Não tardou que muitos destes autores fossem convidados a tentar a sua experiência americana, com os donos dos estúdios a procurarem aliar criatividade jovem a rígidos códigos de trabalho, num jogo que parecia difícil de equilibrar. Como seria de esperar, os resultados demonstraram ser desiguais.
Livide (Alexandre Bustillo, Julien Maury, 2011)
A onda de remakes de clássicos americanos das décadas de 1970 e de 1980 e do J-Horror japonês, em que a indústria de Hollywood estava empenhada, tornou-se o campo privilegiado de onde saiu a maior parte das propostas de trabalho. Alexandre Aja – apesar de ser francês foi incluído no grupo dos Splat Pack - foi o primeiro a chegar e aquele que obteve maiores sucessos de bilheteira. Foi convidado a fazer uma revisão do clássico de Wes Craven, The Hills Have Eyes (2006). Seguiram-se Mirrors (2008) e Piranha 3D (2010). A David Moreau e Xavier Palud coube The Eye (2008), com Jessica Alba e a partir do filme com o mesmo nome realizado pelos irmãos Pang. As coisas não correram bem e os realizadores deram conta da sua insatisfação, queixando-se da forma como o estúdio controlou a edição, o que determinou que o resultado final estivesse longe do que inicialmente tinha sido desenhado. O poderoso Bob Weinstein convidou dois dos mais talentosos, Alexandre Bustillo e Julien Maury, para ressuscitarem a série Hellraiser, porém as negociações acabaram com uma resposta negativa por parte dos realizadores. Ainda se falou de um novo Halloween com assinatura da dupla mas tal não se confirmou. Regressaram a França para trabalhar em Livide (2011), com meios bem mais modestos e com a liberdade criativa que lhes fora recusada. Ironicamente, já se fala de um remake deste filme, em língua inglesa, feito pelo produtor francês e com outro realizador. No final deste mês inicia-se o lançamento internacional de The Tall Man (também conhecido por The Secret), o primeiro filme de Pascal Laugier falado em inglês. Quanto a Xavier Gens, depois do choque de Frontière(s) seguiram-se a adaptação do jogo vídeo com o mesmo nome, Hitman (2007), e mais recentemente The Divide (2011). A estreia deste último em Portugal tem sido adiada e está novamente agendada, para Setembro. Também nesse mês, durante o MOTELx será apresentado Livide, pela primeira vez em Portugal. Com estas duas apresentações no nosso país, teremos uma boa oportunidade para medir o pulso da produção recente de autores oriundos desta vaga de cinema de terror francês.
Em The Divide, ainda antes de surgirem os créditos e o nome do filme, vemos uma série de explosões nucleares que levam um pequeno grupo de habitantes de um arranha-céus a proteger-se no espaço isolado de uma cave. Pelo desenho urbano, adivinhamos estar em Nova Iorque. A porta da cave fecha-se deixando do lado de fora a poeira nuclear que faz desaparecer o mundo, tal como era conhecido. Durante as próximas duas horas ficamos reduzidos ao espaço da cave e ao que vai sobrando do grupo de sobreviventes. Protegidos, mas impossibilitados de sair e com recursos limitados para assegurar a sobrevivência, criam uma micro-sociedade com traços fascistas, geradora de lutas de poder, em que os mais fortes exploram as angústias dos mais fracos e em que o dominador troca rapidamente de lugar com o dominado. É muito pouco o que é fornecido sobre o passado destas personagens, nem isso seria relevante para explicar a bestialidade que é gerada num mundo sem futuro. São aqueles, como poderiam ser outros, como poderíamos ser nós. Os contornos da narrativa não seriam muito diferentes. De cena em cena, a violência de cada plano sempre em crescendo - em busca do máximo possível de prazer antes do fim, num processo de decadência até à eliminação da ultima réstia de humanidade. Não é comparável com a grandeza de Salò o le Centoventi Giornate di Sodoma (Pier Paolo Pasolini, 1976), mas não deixa de ser uma leitura possível para os dias de hoje do romance do Marquês de Sade em que Pasolini se inspirou. Numa das suas cartas, Sade refere que imaginou tudo o que poderia ser concebido, mas certamente que não teria feito tudo o que concebeu e que, seguramente, jamais o faria. É na cave de The Divide que foram criadas as condições para levar a cabo o variado cardápio das obsessões de Sade: humilhações de todo o tipo, inclusive com fluídos corporais; torturas; mutilações; violações; ou assassínios. Já perto do final, a ordem estabelecida é subvertida, quando a dominação masculina é contestada e derrubada. O filme foi filmado por ordem cronológica, em longas sequências, e os actores foram incentivados a improvisar. Este lado performativo permitiu ir reescrevendo as personagens, o que desencadeou tensões entre os actores durante a rodagem, de tal forma que isso se pressente no filme. Num decór fechado e inexpressivo, que facilmente poderia enfadar, é à câmara e aos actores a quem coube criar uma dinâmica que pudesse anular essa limitação. Por isso, não poderíamos deixar de destacar o bom naipe de actores: entre eles, Rosanna Arquette, Lauren German (a protagonista de Hostel: Part II), Michael Biehn, Michael Eklund e Milo Ventimiglia (o menino bonito da série Heroes). Xavier Gens mantém as qualidades que apreciáramos em Frontière(s) e ainda controla um certo histerismo visual, tornando The Divide um dos melhores filmes pós-apocalípticos que vimos nos últimos tempos. Já que mais não fosse, teríamos de reconhecer a força invulgar de Gens ao impor à industria americana um final tão negro. Numa entrevista recente perguntaram ao realizador se, no caso de acontecer uma explosão nuclear, preferiria morrer imediatamente ou lutar para sobreviver. Vendo The Divide não será difícil adivinhar a resposta.
Estava previsto que Livide fosse filmado na Irlanda e com um orçamento confortável. Questões relacionadas com intromissões na orientação artística do projecto levaram a que a rodagem ocorresse na Bretanha francesa e com um orçamento bem mais modesto, inferior ao de À l'intérieur. As paisagens naturais (lembrando os filmes da Hammer) e as lendas dessa região servem de inspiração a uma história de vampiros, mas sem os alhos, os crucifixos, os reflexos no espelho e todos os outros clichés do género. Durante um estágio de cuidados médicos ao domicílio, Lucie (Chloé Coulloud) ouve uma história relacionada com um tesouro escondido numa mansão decrépita e decide procurá-lo, juntamente com dois amigos (Félix Moati e Jérémy Kapone). A única informação que têm da casa é que a dona (Marie-Claude Pietragalla), uma antiga professora de dança, vive aí sozinha, acamada e em coma. Béatrice Dalle regressa num pequeno papel, como mãe de Lucie. Ao contrário de alguma informação que corre, nem Livide é um giallo, nem Alexandre Bustillo e Julien Maury são, até ver, qualquer tipo de herdeiros de Dário Argento. Até porque o filme recusa, nitidamente, ceder a uma tentativa de categorização. Começa em modo de retrato social, segue para o giallo – via Chi l'ha vista morire? (Aldo Lado, 1972) -, continua em jeito de slasher, vira para uma história de vampiros, volta ao giallo – via Suspiria (Dário Argento, 1976) - e termina como conto de fadas. A mistura de géneros e referências, mantendo uma saudável narrativa aberta e com algumas pontas soltas, contrasta com o minimalismo de À l'intérieur, que se tornava demasiado explicativo – de resto, um problema que era partilhado pela maior parte dos outros filmes dessa vaga. Temos menos gore (o suficiente) e mais poesia. Outro ponto a reter é o tratamento da luz, com inspiração no chiaroscuro do pintor Georges de La Tour – para as cenas de escuridão – e nas pinturas de bailarinas de Edgar Degas – para as cenas com luz natural. Com a sua estreia mundial no festival TIFF 2011, o filme teve uma recepção bastante fria, talvez causada pelas expectativas, no nosso entender exageradamente elevadas, que foram colocadas sobre a dupla de realizadores. Tal não impediu que a Dimension Films tivesse assegurado a sua distribuição para o mercado norte-americano – sem ter adiantado até hoje qualquer detalhe sobre o lançamento. Esta companhia já tinha sido responsável pela tentativa de envolvimento dos realizadores em projectos made in USA e também pela distribuição de À l'intérieur nesse mercado. À l'intérieur foi recebido como um verdadeiro acontecimento. Livide é o desejável copo de agua fria direccionado ao buzz que se criou. Uma boa razão para, em Setembro, ir ao MOTELx. //
Em Hostel: Part II (Eli Roth, 2007), numa das salas de tortura, um homem com ar respeitável corta um pedaço da perna de um rapaz e dirige-se para um canto, dominado por uma grande pintura e uma mesa iluminada harmoniosamente por um candeeiro, onde refastelado degusta o insólito manjar. A música de fundo é uma ária da ópera Carmen de Georges Bizet. A intérprete, acompanhada pelo coro, canta o seguinte:
L'amour est enfant de Bohême, il n'a jamais, jamais connu de loi; si tu ne m'aimes pas, je t'aime si je t'aime, prends garde à toi! (Prends garde à toi!) Si tu ne m’aimes pas, Si tu ne m’aimes pas, je t’aime! (Prends garde à toi!) Mais, si je t’aime, Si je t’aime, prends garde à toi!
Sabemos como podem ser ínvios os caminhos do amor. E os do cinema? O senhor que está sentado à mesa é Ruggero Deodato, realizador italiano que em 1980 lançou o filme-choque Cannibal Holocaust. Para proceder às filmagens, levou os actores - estudantes inexperientes do famoso Actors Studio de Nova Iorque; um protagonista da era dourada do porno, cujo maior feito até aí tinha sido participar no clássico Debbie Does Dallas (Robert Kerman aka Richard Bolla); um futuro deputado italiano (Luca Barbareschi); e outros quase desconhecidos - para a fronteira entre a Colômbia e o Brasil e pô-los a contracenar com tribos locais num excessivo festim de sexo e violência, onde nem os animais são poupados. Porque é real toda a violência que é dirigida aos animais, encontrou-se o grande motivo polémico que envolve o filme. Mas não o único. Ambientalistas e grupos de defesa dos direitos dos animais, das mulheres ou dos nativos da Amazónia impossibilitariam que um filme destes fosse produzido e distribuído nos dias de hoje. A crueldade com os animais é tão desmedida e reforça tanto toda a outra violência que as autoridades italianas pensaram tratar-se de um snuff film e obrigaram Deodato a levar actores a tribunal para comprovar que não teriam morrido. Mas tudo não passava de uma estratégia de marketing, pois os actores teriam assinado contractos que os obrigavam a permanecer longe da comunicação social durante um longo período de tempo. Cannibal Holocaust anda em torno de uma equipa de filmagens que é morta por uma tribo amazónica. Pelo título do filme, talvez pensemos que os elementos da equipa encarnam o papel de vítimas, mas não é isso que acontece, pois utilizam métodos muito questionáveis para obter as imagens. Ainda antes de sermos excomungados, atrever-nos-íamos a dizer que Cannibal Holocaust é um belo filme. Para além da violência gráfica, para a história ficou a forma como abriu caminho para os filmes do tipo found footage - lembram-se de The Blair Witch Project (Daniel Myrick, Eduardo Sánchez, 1999) ? - e a música de Riz Ortolani. Os sintetizadores tensos, imagem do cinema de terror italiano da época, marcam os momentos mais fortes do filme, mas é com doçura e melancolia que abrimos a porta para o "inferno verde". Si tu ne m’aimes pas, je t’aime! (Prends garde à toi!). //
Durante a década de 2000, Eli Roth encabeçou um grupo de cineastas, ao qual foi dado o nome de Splat Pack, que lançou um conjunto de filmes do género splatter, mostrando imagens de uma violência extrema e nudez pouco frequentes para o contexto em que eram produzidos e distribuídos. Se anteriores trabalhos neste campo, principalmente nas décadas de 1970 e de 1980, eram criados em contextos independentes e relegados para sessões tardias ou circuitos de exibição específicos, o grupo dos Splat Pack produzia os filmes dentro de poderosos estúdios e utilizava as grandes cadeias de distribuição para chegar ao maior número de espectadores. Os orçamentos de produção destes últimos também eram, comparativamente, muito superiores. O segundo filme de Eli Roth, Hostel (2005), chegou ao primeiro lugar do box office norte-americano, devolvendo ao estúdio que o produziu consideráveis lucros. O grande sucesso comercial destes filmes pôs os cabelos em pé a muitos críticos de cinema norte-americanos que não se contiveram na linguagem que utilizaram para descrever o fenómeno. Os mais conservadores consideraram que os realizadores eram doentes e que os espectadores que se divertiam com os filmes não passavam de um bando de depravados, sádicos e masoquistas. Uma América inteira a precisar de uma longa sessão no divã do psicanalista, portanto. Torture porn foi o termo que o critico David Edelstein utilizou para descrever este grupo de filmes. O título do artigo de Edelstein era, esclarecidamente, Now Playing at Your Local Multiplex: Torture Porn. Why has America gone nuts for blood, guts, and sadism?. O estúdio Lionsgate, onde foram produzidos muitos destes filmes, ficou, definitivamente, denominado como a casa do torture porn.
Eli Roth, filho de uma artista e de um psiquiatra, passara a infância e a adolescência a devorar filmes de terror. No cinema local era muito conhecido pelos funcionários, não só pela assiduidade e tenra idade - com oito anos viu Alien (Ridley Scott, 1979), acompanhado pelos pais - mas também pela frequência com que vomitava durante as sessões. Consta que, a sua persistência em continuar a ver os filmes, levava a que o fizesse mesmo dentro da sala. Num desses dias, decidiu que haveria de ser realizador de cinema. Acabados os estudos, escreveu, em parceria com um amigo, e realizou o seu primeiro filme, o óptimo Cabin Fever (2002), que se tornou um grande sucesso comercial e o levou para o circulo de protegidos de Quentin Tarantino. Este afirmou publicamente que Roth era o futuro do cinema de terror e produziu os seus dois próximos filmes, Hostel(2005) e Hostel: Part II(2007). Hostel é a obra maior do torture porn e um dos filmes de terror mais importantes da década de 2000. Aos que acusavam o torture porn de primário e vazio de crítica social, Roth respondia com um filme fortemente político que dirigia a uma América fascinada com a violência e que a obrigava a olhar de frente para os seus fantasmas. O filme lança uma crítica feroz ao capitalismo e à globalização, mapeando a circulação da violência e do sexo, num quadro em que todas as necessidades tendem a ser mercantilizadas através do uso de complexas redes transnacionais. A produção do filme coincidiu com o rebentar de dois grandes escândalos relacionados com o uso da tortura por parte das forças armadas e agências militares norte-americanas. Um deles estava relacionado com a divulgação de imagens captadas na prisão iraquiana de Abu Ghraib, onde soldados norte-americanos eram mostrados a torturar violentamente prisioneiros, muitos deles mantidos ali sem acusação e outros sem qualquer culpa nas alegações que lhes eram feitas. O outro escândalo estava associado à CIA, sendo a agência acusada de ter utilizado várias bases na Europa de Leste para interrogar e torturar prisioneiros acusados de terrorismo. Ali, longe do controle da lei americana, eram utilizados procedimentos muito pouco convencionais e o escândalo propagou-se também a outros países, inclusive Portugal, que teriam autorizado a utilização de bases locais para o transporte dos hipotéticos terroristas. É precisamente nessa nova e misteriosa Europa, renascida do Bloco de Leste, que Roth situa a sua narrativa e onde os americanos, por momentos, largam a posição do carrasco e se sentam na cadeira da vítima. Em determinado ponto do filme, uma das personagens, no meio de uma rixa num bar, grita: I'm american! I have rights!
Em Hostel encontramos dois jovens turistas americanos e um islandês a viajarem pela Europa em busca de sexo e drogas. Enfadados com o que encontram na velha Europa (Holanda), dirigem-se para uma outra, nova e sedutora (Eslováquia), onde as raparigas têm corpos de capa de revista e não pedem licença para se despir. Com o inferno logo ao virar da esquina, são apanhados numa rede dirigida a clientes internacionais que pagam somas avultadas para torturar e matar jovens incautos. Uma enorme instalação industrial desactivada é utilizada como base para as operações e onde as vítimas são preparadas para se adequarem à fantasia do torturador. Este paga de acordo com a nacionalidade do jovem e, evidentemente, os americanos estão no topo da tabela de preços. Numa escolha feliz, um carrasco é representado por, nem mais nem menos que, o realizador japonês Takashi Miike, outro que também foi colocado na prateleira do torture porn. Em Hostel: Part II os rapazes dão lugar a três raparigas, norte-americanas, que também na Europa, fazem um percurso semelhante e vão parar ao mesmo local. À sua chegada é lançado um secreto leilão internacional, tipo eBay, muito disputado, para escolher os contemplados com a execução das torturas. Um dos arcos narrativos acompanha dois clientes ricos que fazem parte da rede e que levantam o pano relativamente às suas vidas e motivações. Há uma sequência que se replica do primeiro para o segundo filme e que resulta numa homenagem e agradecimento a Quentin Tarantino, também dono de um cinema intransigente, que não se quer refém das normas estabelecidas. No momento da entrada dos jovens na recepção do hotel onde ficam hospedados, na televisão passa Pulp Fiction (1994), dobrado na língua local. Tal como Tarantino, Roth conhece bem e cita os clássicos italianos e japoneses ditos menores, ao arrepio das convenções do cinema que se celebra como sério, dos críticos e dos teóricos.
Dias antes de Hostel: Part II ser lançado, uma cópia da versão final foi parar à internet e ao mercado de rua, o que levou a que, no dia em que estreou, já tivessem sido contabilizados cerca de dois milhões de downloads. Assim, os lucros do filme ficaram abaixo do esperado e em alguns países acabou por nem ser lançado. Relativamente a este facto, na Deadline, o editor Nikki Finke referia: Lionsgate deserves to feel the effects of piracy (not to mention the wrath of mankind) for distributing such a disgusting film. I always support a moviemaker’s right to make whatever creative project he wants. But when businesses profit off uber-violence, the marketplace shouldn’t reward them. Às críticas que lhe eram dirigidas, sobre o excesso de sangue nos seus filmes, Eli Roth respondia, em entrevista à mesma Deadline: Hopefully we’ll get to a point where there are absolutely no restrictions on any kind of violence in movies. I’d love to see us get to a point where you can go to theaters and see movies unrated and that people know its not real violence. Hoje, sabemos que esse momento ainda não chegou, mas desde o lançamento de Hostel: Part II, o cinema extremo deu um enorme passo em frente com uma nova vaga de filmes independentes protagonizada por The Human Centipede (First Sequence) (Tom Six, 2009), The Human Centipede II (Full Sequence) (Tom Six, 2011) e A Serbian Film (Srdjan Spasojevic, 2010), mas isso é uma conversa para outro dia.
Com a passagem da década, declinava o sucesso comercial do torture porn produzido pelos grandes estúdios americanos, a favor de um cinema de terror atmosférico ou do tipo found footage - Paranormal Activity 1, 2 e 3 (Oren Peli, 2007; Tod Williams, 2010; Henry Joost, Ariel Schulman, 2011) e The Last Exorcism (Daniel Stamm, 2010, também produzido por Eli Roth). Durante vários anos falou-se de uma terceira parte para Hostel, mas Eli Roth cedo se demarcou do projecto e desejou sorte ao senhor que se seguia. Em Dezembro de 2011, a Lionsgate lançou finalmente nos Estados Unidos a terceira parte da série, Hostel: Part III (Scott Spiegel), que não passou pelas salas e foi parar directamente ao mercado do DVD. A falta de empenhamento do estúdio na distribuição do filme percebe-se, pois parece claramente dirigido ao público doméstico e aos fãs da série. Os valores de produção são bastante modestos, o que é bem visivel nos exteriores e nas cenas mais violentas. A acção passa da Europa de Leste para Las Vegas, onde um grupo de rapazes participa numa festa de despedida de solteiro. A escolha da cidade do pecado para localizar este Hostel poderia ter sido utilizada para criar novos significados mas tal resulta apenas no esvaziar do conteúdo politico. Se alguns twists dramáticos são divertidos, também se revelam de alcance limitado para quem não tenha visto os anteriores filmes, pois tentam jogar com os conhecimentos que o espectador tem da série. Aguenta-se relativamente bem durante a primeira parte, onde parece que foram concentrados todos os recursos e energia. Na segunda metade é o disparate total, nomeadamente no que se refere às (in)capacidades de representação do elenco. Hostel: Part III mostra bem que, mesmo para ser scream queen (ou king), é preciso ter fibra. Quem tiver interesse e estomago, não deve perder aqui o seu tempo, mas antes procurar os dois tomos do soberbo grand guignol de Eli Roth, frescos como no primeiro dia. //