Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles (Chantal Akerman, 1975)
Outubro é o mês do Doclisboa, que nesta edição programa um dos acontecimentos cinematográficos do ano: a retrospectiva integral da obra de Chantal Akerman. Nascida na Bélgica e influenciada pela vanguarda francesa da década de 1960, foi Pierrot le fou (1965) de Jean-Luc Godard que a levou a tomar a decisão de seguir o caminho de cineasta. Depois de realizar o seu primeiro filme, Saute ma ville (1968), mudou-se para a América onde privou com as experiências dos cineastas independentes locais: Jonas Mekas, Michael Snow e Andy Warhol, e onde conheceu a directora de fotografia Babette Mangolte, que se tornaria uma das suas colaboradoras habituais. Em Nova Iorque realizou filmes experimentais e vagueou pela cidade, por percursos que retomaria anos mais tarde quando regressou para recolher imagens para News from Home (1977), um dos seus filmes mais importantes. O dispositivo do filme é extremamente simples. Planos longos do desenho urbano e das pessoas enquanto, em voz off, Ackerman lê cartas que a mãe lhe enviara durante o período em que a realizadora aí vivera. Por esta altura já Akerman era uma autora prestigiada devido ao sucesso critico de Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975). Deste podemos afirmar, com toda a segurança, que é um dos filmes mais importantes da história do cinema. Chantal Akerman, pela formação europeia e pelas descobertas na América, encontrava-se numa posição privilegiada para fundir as vanguardas dos dois continentes. Durante as décadas de 1960 e 1970, estes dois movimentos pretendiam despertar no espectador uma percepção das especificidades do cinema, que pudesse desmontar as características ilusionistas dos filmes clássicos de Hollywood. Se os europeus se debruçavam sobre os meios normativos com os quais o cinema organizava a narrativa e a criação de significado, aos americanos interessava questionar a especificidade do filme como medium e as suas inerentes propriedades espaciais e temporais.
Nada em Jeanne Dielman é convencional. É todo um programa que interroga e radicaliza os processos de edição, a posição da câmara, o som e a construção narrativa. Durante mais de duzentos minutos, a protagonista (Delphine Seyrig) - da qual sabemos o nome a partir do título do filme -, sucessivamente, repete as actividades relacionadas com o seu trabalho caseiro. Pela tarde prostitui-se, recebendo homens em casa. O dinheiro que recebe guarda-o numa taça situada na mesa da sala de jantar. Perto do final mata um dos clientes. Segundo Tsvetan Todorov, num modelo clássico de enredo, começamos por ter um momento de equilíbrio, que é sujeito a uma ruptura e que no final volta a uma situação de equilíbrio, mas diferente daquela que existia no início. Algo falha quando aplicamos este modelo a Jeanne Dielman. A meio do filme pressentimos que aconteceu uma rotura, dadas as alterações na composição da rotina, mas, embora possamos especular, não chegamos a conhecer o evento que a espoletou. Percebemos apenas que, todas as tarefas que antes eram executadas meticulosamente, passam a conhecer sucessivas perturbações na ordem que as sustentava. Também no fim do filme, não chega a haver uma resolução do problema mas sim uma intensificação do estado de desequilibro. Segundo o crítico Jonathan Rosenbaum, o momento final é apenas uma tentativa para dar uma conclusão ao filme, o que sugere que são bem mais significativos os eventos das três horas (do filme) que o precederam. A câmara capta a rotina com longos planos fixos que nos obrigam a seguir cada actividade na sua totalidade. Pontualmente, dão-se cortes a meio de uma acção que, se são algo corrente num filme convencional, aqui têm como função provocar a consciência do espectador. A rigidez na posição da câmara resulta num dos elementos centrais, e talvez mais radicais, do filme. Segundo Ackerman: The way I looked at was going on as a look of love and respect ... I let her live her life in the middle of the frame. I didn’t go in too close ... The framing was meant to respect the space, her, and her gestures within it. Há quem não deixe de confrontar a posição de Ackerman em relação a Jeanne Dielman com a de Dreyer em relação a Jeanne d'Arc. Enquanto Dreyer utiliza o close up para eliminar a realidade material e o desapego de Jeanne em relação às questões deste mundo, Ackerman evita o close up para evidenciar a ligação plena da sua Jeanne às preocupações mundanas. Também o som oferece uma relação com a imagem diferente daquela a que estamos habituados. Exemplo disso é a "visibilidade" que é dada ao ruído provocado pelo gás na cozinha, que se ouve como se o fogão estivesse perto da câmara.
Chantal Akerman quer ser uma autora livre. Experimentou variados géneros cinematográficos e não gosta de ser arrumada em prateleiras. Tanto que recusou a participação de filmes seus em festivais ligados à temática queer. Porém, a sua recusa em ser catalogada não impediu que os estudos feministas dissecassem, até à exaustão, os seus filmes. Da retrospectiva que agora se apresenta gostaríamos ainda de mencionar dois filmes notáveis, ambos mais recentes e onde o lado documental é evidenciado - D'Est (1993) e De l'autre côté (2002). Uma recomendação final para a sua ultima grande ficção, La captive (2000), uma assombrosa leitura pessoal de À la recherche du temps perdu de Proust.
A completar a passagem de Chantal Akerman por Lisboa serão apresentadas várias obras que a autora concebeu para espaços expositivos - prosseguindo a estratégia que o Doclisboa iniciou no ano passado com o caso exemplar do artista/cineasta Harun Farocki. Esta faceta de Akerman não é nova pois, desde há muitos anos, que cria novos projectos ou reconfigura filmes seus para serem apresentados nestas circunstâncias. Pelos exemplos que temos visto, a passagem de Akerman da sala de cinema para a galeria ou museu não tem criado resultados suficientemente estimulantes na criação de significado ou complexificação do universo da autora. O mesmo poderíamos dizer de Pedro Costa, do qual o Doclisboa também apresentará algumas obras criadas para este tipo de contexto. Sabemos que a nossa opinião não é unânime e até pode parecer reaccionária, mas é no escuro da sala de cinema que os queremos ver. //
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