O Mundo Doente de Tom Six no MOTELx



The Human Centipede II (Full Sequence) (Tom Six, 2011)



Em Lisboa, o MOTELx é uma das raras oportunidades para ver filmes de terror de qualidade numa sala de cinema. Olhando para a lista de filmes exibidos nas anteriores edições, não podemos deixar de registar que por aí passaram alguns dos filmes que marcaram a actualidade do cinema de terror dos últimos anos. Basta pensar que o filme mais marcante de 2011 foi exibido na edição anterior: The Woman (2011) de Lucky McKee. Nesta sexta edição, Dario Argento é um nome sonante e, como seria de esperar, recolhe as atenções mediáticas. Não tivesse existido Mario Bava e Argento seria o nome maior do cinema fantástico europeu. Assim, resta-lhe o lugar de digno, e também grande, sucessor de Bava. A sua cinematografia é longa, de onde sobressaem meia dúzia de obras-primas que ficariam bem em qualquer lista dos melhores filmes de terror de todos os tempos. Ainda assim, uma delas destaca-se: Suspiria (1977). Obra inigualável, pela declaração de amor que faz ao excesso e pela genialidade na encenação. Um must para quem não teve ainda a oportunidade de o ver em sala e deliciar-se com as cores vibrantes e a fascinante música dos Goblin. Para completar o destaque, o MOTELx exibirá mais três obras realizadas por Argento e uma outra para a qual co-escreveu o argumento e produziu. Profondo rosso (1975) e Inferno (1980) fazem parte do pequeno grupo de obras-primas de que falámos. Sobre Inferno paira o fantasma de Mario Bava, que desenhou os cenários, criou efeitos e realizou algumas das cenas, devido a uma doença súbita que atacou Argento. La terza madre (2007) é o final da Trilogia delle Tre Madri, iniciada com Suspiria e Inferno. Infelizmente, neste caso o resultado é fraco quando comparado com companhia tão nobre e vem apenas reafirmar o esgotamento que o trabalho de Argento atingiu nos últimos anos. Tendo uma obra tão longa e rica, não se percebe a inclusão de Dèmoni (1985) neste pequeno ciclo, a não ser pelo facto de ter sido realizado por Lamberto Bava, filho de Mario Bava, e com isto vir acentuar, ainda mais, a paternidade que o mestre italiano exerce sobre o cinema do homenageado. Com muita pena nossa, fica de fora Phenomena (1985) que, também filmado na Suíça e com algumas semelhanças na história, forma uma bela dupla com Suspiria e tem um dos começos mais belos, e já agora arrepiantes, do cinema de Argento.  Outros pontos a reter na presente edição, para além de Livide que já aqui abordámos, são os filmes do importante realizador japonês Nobuo Nakagawa, The Pact (de Nicholas McCarthy, vem de Sundance, vai passar por Sitges; aparentemente modesto, sem grandes efeitos, mas muito assustador), V/H/S (outro de Sundance; do género found footage, produzido por Brad Miska, do site Bloody Disgusting, e dirigido por vários realizadores, incluindo Ti West, um dos nossos favoritos, e Adam Wingard, autor do muito esperado You're Next), The Tall Man (Pascal Laugier na América, depois de Martyrs, numa desilusão, com muitas voltas no argumento e que demora demasiado tempo a afirmar-se) e Red State (Prémio de Melhor Filme no Sitges 2011; Kevin Smith promete muito, para acabar num espalhanço).






The Human Centipede II (Full Sequence) (Tom Six, 2011)



Mas o grande acontecimento do MOTELx de 2012 será a apresentação ao público português de The Human Centipede II (Full Sequence) (2011), de Tom Six. Segunda parte de uma trilogia iniciada com The Human Centipede (First Sequence) (2009) e que concluirá com The Human Centipede III (Final Sequence), um novo filme ainda em produção.  Não é fácil contar a história que rodeia estes filmes sem desmanchar a seriedade de quem relata. No primeiro filme, um médico alemão, Dr. Heiter (Dieter Laser), põe em pratica estudos científicos que realizou e constrói uma centopeia humana ligando três pessoas, através do ânus e da boca. Com um esquema projectado na parede, o Dr. Heiter explica, assim, o processo digestivo às cobaias forçadas: ingestão de A ... passa para B ... e C executa a excreção. Tal como a promoção do filme refere: 100% medically accurate. Movimentos suaves da câmara conduzem-nos pela casa sofisticada de Heiter. A luz é fria, reforçando o aspecto clínico e higiénico que rodeia a operação de construção do novo espécime. A popularidade e a polémica com que foi recebido o filme levou Tom Six a subir a parada e a lançar-se em The Human Centipede II (Full Sequence). Para formar a centopeia, em vez de três elementos, passamos a ter doze. Ainda em fase de promoção do primeiro filme, já Tom Six avisava que o próximo iria ser mais violento e desafiador. Uma das actrizes referiu que, finalmente, os espectadores iriam ver o sangue e os excrementos que lhes tinham sido ocultados. Chegados a The Human Centipede II (Full Sequence), resta concluir que as promessas foram integralmente cumpridas. Quando comparado com este, parece que o primeiro filme foi realizado por um menino de coro.

Filmado a preto e branco, maioritariamente num parque de estacionamento e numa garagem, quase que cheiramos o ar pestilento dos lugares. Martin (Laurence R. Harvey), vigilante de um parque de estacionamento subterrâneo londrino, sucede a Heiter no lugar de protagonista. De baixa estatura e obeso, vive no desprezo que a sua figura provoca à maior parte das personagens, excepto ao seu médico, a quem desperta fantasias sexuais. Enquanto vigia o parque, Martin assiste, repetidamente e com grande paixão, ao visionamento de The Human Centipede (First Sequence). Criou um álbum de imagens do filme que, deslumbrado, desfolha. Estuda detalhadamente o método de trabalho e copia os diagramas de Heiter. Criar uma nova centopeia humana torna-se para ele um projecto de vida. Na hora da verdade, quando tem de passar da intenção à prática, a desqualificação e a falta de material médico adequado levam a que recorra aos objectos mais próximos, para concluir a tarefa: facas, tesouras, martelos, alicates ou agrafadores. E sem anestesia. Como a promoção também apontou: 100% Medically Inaccurate. O ambiente exigente do Dr. Heiter é substituído por um processo do it yourself, em que o sangue corre, a preto e branco, sem qualquer possibilidade de estancar. Numa das cenas as fezes são projectadas em todas as direcções, mesmo de encontro à câmara. E por instantes, é quebrada a regra do preto e branco. Quando alguém fraqueja devido à crueldade da operação, Martin choraminga, não pela dor que os seus actos provocam, mas por se sentir frustrado com a dificuldade que tem para levar à pratica a proposta de Heiter. É admirável a interpretação de Laurence R. Harvey que, sem soltar uma palavra durante todo o filme, coloca o espectador numa zona de desconforto que pende entre a simpatia e o horror. Uma tensão que se estende às características opressivas do espaço palco da acção e que é reforçada por planos fixos captados a partir do ponto de vista de uma câmara de vigilância. O desenho sonoro, o preto e branco e algumas cenas na casa de Martin remetem-nos para Eraserhead (1977) de David Lynch, um realizador que Six admite como uma das suas influências.

Nos Estados Unidos, quando estreou no Fantastic Fest e como parte da campanha de marketing, a distribuidora IFC Films colocou uma ambulância à porta do cinema e distribuiu sacos de enjoo pelo público. A ambulância não teria sido usada mas, segundo alguns relatos, à saida um espectador teve de receber assistência médica. Ao ser submetido previamente ao British Board of Film Classification (BBFC), para lançamento no Reino Unido, obteve um parecer negativo. Como que prevendo a polémica e dando uma resposta antecipada, no filme, uma das vítimas, quando se dá conta das intenções de Martin, grita desesperada: é um filme ... The Human Centipede é um filme. Ainda no começo, Martin a assistir ao final de The Human Centipede (First Sequence), não é mais que uma imagem do espectador a ver The Human Centipede II (Full Sequence). Uma imagem de nós a vermos, apenas, um filme. Depois de alguns cortes e muita discussão a questionar a autoridade do BBFC quando põe em causa a livre escolha de um público adulto,  The Human Centipede II (Full Sequence) acabou por receber a autorização desejada. Neste momento circulam no mercado diferentes versões com cortes. Esperamos que, a cópia que o MOTELx vai exibir nesta edição, esteja intacta. Mesmo nestes tempos de massificação da violência, resulta particularmente difícil ver algumas cenas de The Human Centipede II (Full Sequence), principalmente na segunda parte, onde é posto de lado o fora de campo, que era favorecido na primeira parte e em The Human Centipede (First Sequence). Por momentos, lembramo-nos da reacção que tivemos quando vimos, pela primeira vez, Salò o le Centoventi Giornate di Sodoma (Pier Paolo Pasolini, 1976). Um mundo sem esperança, onde não existe algo, suficientemente firme, em que nos possamos agarrar. Perturbante e radical. //

Link para Livide
Link para outras polémicas em torno do British Board of Film Classification

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