Vampir-Cuadecuc




























Vampir-Cuadecuc (Pere Portabella, 1970)




No contexto da produção de cinema espanhola, embora Jess Franco e Pere Portabella ocupem posições singulares e diametralmente opostas, há um dado importante que os une: a vontade de experimentar. No início da carreira, Pere Portabella teve como principal distinção o facto de ter sido produtor de Viridiana (1961) de Luis Buñuel. No entanto, hoje talvez seja mais conhecido pelos frequentadores de museus e galerias de arte do que pelos das salas de cinema, com uma cinematografia composta por poucos títulos e muitos deles de duração curta, sem grandes preocupações narrativas, reflectindo sobre o cinema e os seus modos de produção. Jess Franco realizou cerca de duzentos filmes, para os quais escreveu argumentos, compôs música e fez a produção, participando muitas vezes como actor. Os baixos orçamentos levaram-no a soluções engenhosas, numa obra que muitos consideram curiosidade camp, trash ou exploitation, e uma informada minoria procura conhecer detalhadamente, tornando-o num dos realizadores de maior culto no mundo. A sua ligação a Portugal é intensa, onde realizou alguns dos seus melhores filmes, durante a década de 1970, aliado a co-produtores nacionais. Aqui viveu, casada com um português e de ascendência lusa, a sua primeira grande musa, Soledad Miranda, morta num trágico acidente de automóvel, entre o Estoril e Lisboa. Um dos exemplos mais célebres desta ligação é Die Liebesbriefe einer portugiesischen Nonne (Cartas de Amor de Uma Freira Portuguesa, 1976), filme com uma forte componente erótica, ainda que tenha obtido autorização para ser rodado em monumentos religiosos (entre eles, o Mosteiro dos Jerónimos). Quando esta obra foi exibida em Portugal, na década de 1980, foi motivo de escândalo levantado pelo tablóide Tal & Qual, que lhe colou, indevidamente, o rótulo de pornográfico, levando os actores nacionais participantes (Herman José, Ana Zanatti e Victor de Sousa) a se demarcarem dela.

A censura espanhola do regime ditatorial do general Francisco Franco, obrigou Jess Franco a refugiar-se noutras paragens para continuar a actividade de cineasta, principalmente quando se tratavam de aproximações ao softcore ou ao hardcore - muitas vezes forçado pelos produtores e distribuidores que chegavam a fazer terríveis inserções hardcore, rodadas sem o seu conhecimento e com outros actores. A maior parte dos seus filmes seguia para o mercado internacional, em versões diferentes, dependendo da força da censura local, pelo que não é tarefa fácil entrar na sua obra, sendo aconselhável um mapa que permita assinalar as versões que mais se aproximam do seu plano de intenções. Os grandes cultores da sua obra encontram-se espalhados pelo mundo e procuram avidamente as diferentes versões, trocando informações valiosas e discutindo em grupos especializados, nas redes sociais. Por volta de 1969, Jess Franco lança-se numa adaptação fiel da obra Dracula (1897) de Bram Stoker, a ser rodada em Espanha, com financiamento e actores internacionais. Não gostava particularmente dos filmes produzidos pela Hammer, que considerava versões a cores dos filmes de monstros da Universal, mas foi lá roubar a sua maior estrela, Christopher Lee, para desempenhar o papel do conde vampiro, juntando-o a outras vedetas internacionais, Klaus Kinski e Herbert Lom, e a lendas do cinema de género europeu, Maria Rohm, Soledad Miranda, Paul Muller e Jack Taylor. Count Dracula (El Conde Drácula, 1969) não teria grande interesse dentro da produção de Jess Franco ou da filmografia de Christopher Lee - impossível de descolar das suas interpretações de Dracula, nos filmes de Terence Fisher - não fosse a fama que lhe deu o catalão Pere Portabella, quando foi autorizado a acompanhar as filmagens, daí resultando a notável obra Vampir-Cuadecuc (1970). O termo catalão “cuadecuc” pode ser traduzido como “cauda de verme” mas também pode referir-se à parte não exposta no final de um rolo de filme.

Considerar Cuadecuc um dos mais célebres making-off da história do cinema, muitos anos antes da vulgarização deste formato, é bastante redutor em termos formais. Portabella usa filme a preto e branco de alto contraste, para a criação de imagens expressionistas que revelam os bastidores, a definição dos ambientes, a criação artificial de nevoeiro e de teias de aranha, as pausas, as repetições ou os sorrisos dos actores para a câmara, ou seja, para exibir todo o aparato que está para além da tela de cinema, expor os códigos que definem o género do terror e, de um modo mais lato, explorar a linguagem do cinema. Na pista de som, os diálogos foram substituídos por silêncio ou música concreta da responsabilidade do seu colaborador habitual, Carles Santos. Unindo o som de instrumentos musicais a ruídos reconhecíveis do quotidiano, que interferem insolitamente com o conteúdo da imagem, cria situações perturbantes, como as cenas em que os actores falam e apenas se ouvem sons que parecem toques insistentes de alguém numa porta ou no soalho. Pontualmente, os operadores de câmara de Franco entram no plano de Portabella como se estivessem a intervir com precisão numa cirurgia, que mais não é, do que um filme de terror modelado com efeitos especiais de baixo orçamento. O mesmo procedimento utiliza na curta Play Black (1970), agora com a sua própria equipa a filmar a gravação de um coro para a banda sonora de um filme sobre Antoni Gaudí. No entanto, o que destaca o dispositivo de Cuadecuc de um mero making off é o facto de Portabella (re)filmar a encenação de Franco, como se lhe pertencesse, a partir de diferentes ângulos, não só vampirizando o trabalho de Franco, como juntando imagens de uma Espanha parada no tempo, com ruas desertas e prédios que se diriam desabitados, a contrastar com outras imagens ou sons em off que indiciam sinais de movimento, mudança ou progresso: uma filmagem a partir de um veículo em movimento rápido, um comboio que passa tão veloz que só retemos as linhas do design das carruagens ou os sons de um avião e do que parece ser um martelo pneumático a perfurar o chão. Em planos repetidos, do alto da varanda da sua casa senhorial, Dracula vigia atento todos os movimentos à sua volta.

No genérico inicial de Cuadecuc está assinalado: Este filme foi realizado durante a rodagem de Dracula de Jesus Franco, produzido pela Hammer Films. Não existe evidência real de que a produtora britânica estivesse envolvida na produção do filme de Franco, pelo que podemos recorrer a alguma especulação para contextualizar este facto. E se não se tratasse de um lapso? E se esse erro factual fosse inserido, conscientemente, por Portabella, no genérico? Assim, também poderíamos imaginar que, nas condições em que está assinalado, o filme em questão nunca existiu, servindo apenas como motivo para contornar a censura e filmar abertamente a realidade crua da ditadura fascista espanhola. E que interesse nutriria Portabella pelo facto de o mestre de cerimónias Jess, partilhar o mesmo apelido, Franco, com o ditador Francisco? Portabella continuaria a reflectir sobre o regime fascista em Umbracle, realizado no mesmo ano que Cuadecuc e também com Christopher Lee. Em Cuadecuc, Pere Portabella não mostra a morte de Dracula e pede a Cristopher Lee que retire todos os elementos da sua máscara para ler o excerto da obra de Bram Stoker, que descreve a morte da sua personagem, terminando com um close up do rosto do actor, imóvel por alguns segundos a olhar para a câmara, enquanto se ouve a voz de alguém que grita: corta. O negro invade o écran e percebemos que é o fim. Poucos anos depois, a 20 de Novembro de 1975, o general Francisco Franco morreria, acelerando a queda da ditadura, e Pere Portabella tornar-se-ia num participante activo da vida política espanhola.

Versão revista do texto distribuído no âmbito do ciclo BELA LUGOSI ESTÁ MORTO!, programado por Carlos Alberto Carrilho para o colectivo White Noise.



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