Zero Dark Thirty






Zero Dark Thirty (Kathryn Bigelow, 2012) 



The following motion picture is based on
first hand accounts of actual events.


A obra de Kathryn Bigelow enfrenta uma série de convenções instaladas na indústria cinematográfica. Não só se tornou na primeira mulher a receber o óscar para a melhor realização, como o seu olhar é dirigido para universos marcadamente masculinos, que tradicionalmente são abordados por homens. Falamos tanto do filme de guerra, The Hurt Locker (2008),  como do filme de surf, Point Break (1991). No que diz respeito aos géneros, não se fica pelos citados e ainda poderíamos destacar a ficção cientifica, Strange Days (1995), ou o terror, o fabuloso Near Dark (1987). Mas não foi o cinema que recolheu inicialmente a sua atenção. Nos anos de 1970, dedicou-se à pintura e trabalhou com Lawrence Weiner e o colectivo Art & Language. Tratam-se de duas das maiores influências da arte conceptual que, nas décadas seguintes, marcaram vigorosamente o rumo da arte internacional. Em Sentences on Conceptual Art, outro dos gurus do movimento, Sol LeWitt, aponta que ideas can be works of art; they are in a chain of development that may eventually find some form. All ideas need not be made physical. Por outras palavras, uma ideia pode substituir uma pintura ou uma escultura, enquanto obra de arte - um conceito que reagia à mercantilização imposta pelo mercado da arte. Em finais da década de 1970, numa mistura de arte pop com arte conceptual, um grupo de artistas norte-americano, Pictures Generation, apropriava-se, de modo critico, das imagens produzidas pelos meios de comunicação de massa, numa reacção, segundo o crítico Douglas Crimp, à importância crescente do modo como as imagens – dos jornais, revistas, televisão e cinema – definiam a experiência humana (para mais detalhe, ver post a propósito de Robert Longo). Perante isto, não deixa der ser curiosa a aproximação de Kathryn Bigelow ao cinema na sua forma industrial - não foi caso único -, depois de ter convivido com a fracção mais radical da arte conceptual e enquanto as artes plásticas olhavam para o cinema de modo crítico. Ainda mais quando a obra de Bigelow se dirige claramente ao grande público e não acumula sinais evidentes do típico "filme de artista". Numa entrevista ao The Village Voice, quando lhe perguntaram como é que a sua anterior passagem pelas artes plásticas comunica com os seus filmes, respondeu: I think there's something called a clean-room theory, a legal term: You can't unknow what you know. Whether or not it's background or foreground, it's still somehow there, subconsciously. Like a pigment. E quanto ao facto de já não pintar: I don't, actually, but I think of film really in the same parameters I did when I was in the art world: The sense of trying to use the work to justify the work. So I guess I think of tonal balances—of accessibility (meaning entertainment) and substance. And there's a wonderful tension between the two, and if you can strike the right balance, therein is the art.

Acabado de estrear, Zero Dark Thirty (00:30 A Hora Negra, 2012)  é um exercício aberto que lança pistas e pede ao espectador que construa a "sua" narrativa. Que tem, desde logo, um fim à vista: a captura de Osama bin Laden. Mas o que está em causa são os contornos dessa mesma narrativa: as obscuras movimentações que tiveram lugar entre o 11 de Setembro e a morte de Laden. Quem está familiarizado com o mundo das séries televisivas poderá, de imediato, estabelecer um paralelo entre Zero Dark Thirty e a série Homeland (Howard Gordon, Alex Gansa, 2011– ). Ambas as obras debruçam-se sobre a luta contra o terrorismo islâmico e têm como protagonistas duas agentes obcecadas com a sua missão. A aproximação poderia ficar por aí, pois no filme de Bigelow não há réstia de romantismo ou sentimentalismo. As personagens, agentes envolvidos nas operações de captura, não têm passado e renunciam a qualquer indicio de futuro que as possa desviar da obstinação que lhes consome o presente. Um processo de abstracção que toma conta do filme e que culmina na espantosa longa cena final, quando os militares tomam de assalto o último refúgio de Osama bin Laden. Com a luz reduzida ao mínimo e os militares totalmente tapados com o equipamento, desaparece qualquer traço de individualidade, tanto nas personagens como nos cenarios. É seguindo o ponto de vista do grupo que caminhamos até ao culminar da missão. Sem contracampos e, por conseguinte, pontos de vista dos alvos. Zero Dark Thirty pode não ter o brilho de The Hurt Locker mas resulta numa instalação, suficientemente elegante, duma artista que trabalha no seio da indústria. Na era da infantilização dos discursos, estamos perante cinema feito por adultos e dirigido a adultos.

Estes méritos não foram suficientes para conter a instrumentalização politica de que Zero Dark Thirty foi alvo, tanto da esquerda como da direita, e a violência crítica com que foi recebido, mesmo por muitos dos que incensaram Kathryn Bigelow no ano em que recebeu o óscar. Uma das armas que tem sido usada contra o filme é que promove o uso da tortura e que faz parte duma campanha de propaganda da administração norte-americana, que tenta limpar a face no que toca ao uso da tortura nos interrogatórios aos presumíveis terroristas, no período pós 11 de Setembro. A realizadora foi, em parte, responsável pela polémica pois insistiu exageradamente no carácter documental do filme. Foi, assim, com alívio que lemos a afirmação de Kathryn Bigelow no título da entrevista que concedeu à revista francesa Les Inrockuptibles: Zero Dark Thirty est une fiction. Mesmo que documentos confidenciais tenham sido consultados e por mais rigor que possa ter havido na reconstituição dos factos, estamos em modo de ficção e é assim que o filme deve ser julgado. Passar de acusações de propaganda política até colagens a Leni Riefenstahl parece um passo de gigante, mas não para Naomi Wolf que utilizou a sua tribuna no The Guardian para cometer o pecado, numa carta aberta dirigida a Kathryn Bigelow. Segundo Wolf, it may seem extreme to make comparison with this other great, but profoundly compromised film-maker, but there are real echoes. When Riefenstahl began to glamorize the National Socialists, in the early 1930s, the Nazis' worst atrocities had not yet begun; yet abusive detention camps had already been opened to house political dissidents beyond the rule of law – the equivalent of today's Guantánamo, Bagram base, and other unnameable CIA "black sites". Pois a comparação entre Kathryn Bigelow e Leni Riefenstahl parece extrema e violenta. E enquanto compara, vai relativizando o que não pode ser relativizado. Riefenstahl, claro. //

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