The Tall Man (O Homem das Sombras, 2012), de Pascal Laugier, fez o pleno dos festivais de cinema de terror portugueses (Fantasporto e MOTELx) e estreou na semana passada. Já o tínhamos dito aqui: The Tall Man é um falhanço, em grande parte devido a uma narrativa dominada pelos twists e que demora demasiado tempo a afirmar-se. Não é um problema de género - de saber se se inscreve ou não no cinema de terror -, mas sim de fundo. Um veículo para Jessica Biel que, para além de actriz principal, aparece também como produtora executiva. Surpreende, então, que Pascal Laugier, um dos casos mais celebrados da vaga de cinema de terror francês da década de 2000, tenha agora uma exposição mediática desta medida com um filme que não a merece. A presença de elenco e financiamento norte-americanos não deveria ser razão suficiente para o facto. A estreia de The Tall Man foi também motivo para o ressurgimento de louvores entusiásticos dirigidos aos primeiros filmes deste grupo de realizadores e da constatação de que os filmes que se seguiram consistem, regra geral, em desilusões.
A vaga de cinema de terror gaulês (Alexandre Aja, Alexandre Bustillo e Julien Maury, David Moreau e Xavier Palud, Pascal Laugier, Xavier Gens, ... ) surgiu num contexto específico da realidade politica e social francesa: a ascensão da extrema direita e as revoltas de jovens suburbanos. Daí que, as narrativas se concentrassem na ansiedade perante a diferença e o Outro. Os resultados foram desiguais, com muitos dos filmes a evidenciarem um certo histerismo e violência desenfreada que, no seu pior, anestesiavam e alienavam o espectador. Nos filmes seguintes, perdido o contexto e com a chegada das propostas para filmarem na América, deu-se uma renovação que, mais que desejada, foi imposta. Na maior parte dos casos, os filmes actuais não são menores quando comparados com aqueles que foram produzidos na década de 2000. Se os discursos foram amaciados, perdeu-se em violência o que se ganhou em subtileza. Veja-se o caso de Livide (Alexandre Bustillo, Julien Maury, 2011) ou de The Divide (Xavier Gens, 2011), já aqui apreciados. O que acontece é que, para muita gente, as expectativas foram colocadas demasiado altas. Como complemento, no link abaixo deixamos a reflexão alargada que fizemos, no ano passado, sobre a produção passada e actual destes realizadores. Não está referido no post, mas aproveitamos para acrescentar que, da primeira fornada, um dos filmes de que mais gostamos é Ils (David Moreau, Xavier Palud, 2006), o mais modesto e de que ninguém fala. //
Depois do lançamento no Reino Unido, American Mary (Jen Soska, Sylvia Soska, 2012) já tem marcada, para o próximo mês de Maio, a estreia em sala, nos Estados Unidos. Há uns tempos, a Time Out de Londres publicou uma lista com os filmes favoritos das realizadoras de American Mary, também conhecidas como The Twisted Twins. Estes são os filmes que escolheram e o respectivo comentário:
American Psycho (Mary Harron, 2000) Funny Games (Michael Haneke, 1997) The Exorcist (William Friedkin, 1973) Audition (Takashi Miike, 1999) Let the Right One In (Tomas Alfredson, 2008) Antichrist (Lars von Trier, 2009) Martyrs (Pascal Laugier, 2008) Man Bites Dog (Remy Belvaux, Andre Bonzel, Benoit Poelvoorde, 1992) The Thing (John Carpenter, 1982) Alien (Ridley Scott, 1979)
"American Psycho” is one of the greatest horror satires ever made. The controversial Bret Easton Ellis novel turned into a film by Mary Harron is violent, fun, and disturbing all at the same time. “Martyrs” is a female-driven bloodbath that will please even the most gore hungry fans with hauntingly dark undertones. The film delves into what makes a victim and the power exchange between people who victimize and those they inflict their torture upon. The same goes for “Audition” – most often we see the female characters in a horror film as the helpless victim. This film leads you in one direction, skillfully hinting at a darker storyline for the otherwise meek and slight Asami until the final 15 minutes where we are introduced to a merciless monster. A perfect personification of the irrational rage of a woman scorned.
No there's something out there, recuperamos o favorito das Soska, American Psycho, mas com um pouco de batota pois, ao contrário do que acontece habitualmente nesta rubrica, não mostramos os créditos ou a primeira cena do filme. American Psycho é a adaptação do livro homónimo (1991) de Bret Easton Ellis, que assinalou o fim da euforia yuppie, nos Estados Unidos, durante a segunda metade da década de 1980. Tal como o livro, a produção do filme esteve envolta em controversia. A proposta para a realização passou por várias mãos, desde Oliver Stone a David Cronenberg. Não deixa de ser interessante verificar que foi uma mulher, Mary Harron, que assumiu a realização, depois das acusações de misoginia que foram dirigidas a Bret Easton Ellis. Para dar corpo à personagem principal, Patrick Bateman, foram indicados vários actores - entre eles, Brad Pitt e Leonardo DiCaprio - que acabaram por desistir pela ameaça de poderem manchar a carreira. A personagem foi entregue a Christian Bale, no seu primeiro marcante papel de adulto e anos depois de ter sido notado pela participação em Empire of the Sun (Império do Sol, 1987) de Steven Spielberg. Bale enfrenta o que lhe é proposto, expondo-se com uma generosidade invulgar, numa atitude consciente de que não tem nada a perder.
Esta é a terceira cena de American Psycho, surgindo logo a seguir aos créditos, e é exemplar no modo como, em dois minutos, condensa as quase duas horas do filme. Patrick Bateman é um rico executivo nova-iorquino transformado em serial killer. Pelo piano de John Cale, partilhamos o espaço intimo de Bateman. A dieta, a máscara de gelo, os abdominais, o gel, o óleo, o esfoliante, o aftershave, o hidratante, o creme anti-rugas e, mais uma vez, a máscara. Como se estivéssemos num clipe publicitário, cada produto é apresentado com a sua especificidade e respectivas indicações de como o usar. É o cinema à boleia da linguagem da publicidade, mas reservando a possibilidade de a boicotar, tanto com o som da urina como com os restos da máscara que ficam na face. Uma tensão que também aponta para a incompatibilidade que Patrick Bateman parece viver - enquanto executivo, belo e de sucesso, e ao mesmo tempo um criminoso violento. Mais à frente, a banalidade e o vazio provocado pelos rituais do consumo serão contrastados com cenas cruas de violação, desmembramento, tortura, morte e canibalismo. Não como proposta de incitação à violência, tal como o filme foi acusado, mas como um caminho para reflectir sobre a insatisfação de Bateman. Antes que caia a máscara da sanidade, a câmara rodeia a pele da personagem, incapaz de perscrutar o seu interior. Como um sofisticado manual de instruções de como cuidar a carne. No que toca à alma, é a negação da hipótese de catarse que veremos a seguir. //
Snuff (Michael Findlay, Roberta Findlay, Horacio Fredriksson, 1976)
Apesar de nunca ter sido reconhecido oficialmente, consta em alguns relatos que o grupo de Charles Manson teria gravado os assassinatos que horrorizaram a América e vitimaram Sharon Tate, a companheira de Roman Polanski. Mas a gravação de imagens de assassinatos pelos próprios serial killers surgiu como prova em vários outros casos, nomeadamente nos crimes de Leonard Lake e Charles Ng. Aqui, a policia encontrou um grande número de filmes e fotografias, captadas numa autentica sala de tortura, onde muitas vitimas foram violadas e mortas. O filme Henry: Portrait of a Serial Killer (John McNaughton, 1986) sugere o modus operandi, mostrando a personagem principal e o parceiro, sentados em frente ao televisor a rever, em câmara lenta, os acontecimentos que anteriormente tinham gravado. Alguns investigadores apontam, como motivo para a recolha das imagens, o facto de as acções não poderem ser perpetradas com a regularidade desejada, pelo que os assassinos podem, assim, rever e experienciar de novo os acontecimentos. De especulação em especulação, criou-se também a ideia que haveria quem recolhesse imagens de torturas e mortes para as comercializar e agregou-se este mercado num género a que se deu o nome de snuff film. Linda "Deep Throat" Lovelace assumiu, mesmo, perante as autoridades norte-americanas que women acting in porn films were being murdered on camera or after filming when they were deemed of no further use. Aponta-se que a policia britânica e a norte-americana têm provas da existência de um mercado que paga, principescamente, os objectos comercializados, mas publicamente não são conhecidos dados suficientemente sólidos. A existência deste tipo de filmes e a sugestão de que existe prazer no consumo destas imagens, mesmo por outros não envolvidos nas acções, é algo que tem alimentado a fantasia do público e que o cinema de ficção explorou de forma diversificada, quer no caso de autores respeitados – para além do filme citado de John McNaughton, também em Hardcore (Paul Schrader, 1979), Videodrome (David Cronenberg, 1983), Demonlover (Olivier Assayas, 2002) ou ainda, muitos anos antes, em Peeping Tom (Michael Powell, 1960) -, quer no sector inesgotável da exploitation - Snuff (Michael Findlay, Roberta Findlay, Horacio Fredriksson, 1976), Faces of Death (John Alan Schwartz, 1978) ou Cannibal Holocaust (Ruggero Deodato, 1980, ver post respectivo). Os japoneses também têm uma entrada de relevo neste campo com os filmes da série Guinea Pig, a quem o actor Charlie Sheen deu uma ajuda preciosa no processo de celebrização ao denunciar Guinea Pig 2: Flower of Flesh and Blood (Hideshi Hino, 1985) como um snuff film. Em vários destes exemplos, os autores foram pressionados a apresentar provas públicas de que ninguém tinha sido violentado durante a rodagem. Mas é a massificação da televisão que, a partir dos anos de 1960, vem propor uma relação diferente com a morte e permitir a entrada da realidade da guerra na sala de estar do espectador. A Guerra do Vietname foi o primeiro momento em que o espectador comum se deparou, à hora da refeição, com imagens violentas que documentavam a morte. Anos mais tarde, nas Guerras do Iraque e do Afeganistão, a utilização do directo e do modo "night vision" acompanharam a destruição massiva ou selectiva das operações militares. Também, com a internet e a vulgarização do uso da câmara de vídeo, ousou-se espreitar, como que pelo buraco da fechadura, algo que se apresentava, até então, inacessível ao olhar: o horror e a sexualização da tortura. Veja-se o caso recente de Kathryn Bigelow que, numa assumida abordagem realista, explora uma ameaça real de morte para fins comerciais e de entretenimento, iniciando Zero Dark Thirty (2012) a negro, com vozes em off captadas durante os ataques do 11 de Setembro. E a pergunta que fica é: se existe público com uma vontade secreta de consumir e situações potenciais para produzir, porque não existirá um mercado para snuff films genuínos?
Michael Findlay e Roberta Findlay são dois mestres da sexploitation, aos quais se devem pérolas como The Touch of Her Flesh (1967) ou A Thousand Pleasures (1968). Anos antes de conviver intimamente com os The Beatles, Yoko Ono vestiu o papel da companheira de um traficante de drogas, que é roubada e violada, num dos filmes do casal, Satan's Bed (1965). Na década de 1970, os Findlay, acompanhados por algumas faces reconhecíveis dos seus filmes, foram para a Argentina filmar uma adaptação livre dos eventos conduzidos pelo grupo de Charles Manson. O resultado foi Slaughter (1971), um filme de baixo orçamento, que teve uma passagem breve pela zona de Times Square, o centro da grindhouse em Nova Iorque. Anos depois, o distribuidor Allan Shackleton adquiriu os direitos do filme e decidiu relança-lo numa nova versão a que deu o nome de Snuff, com a particularidade de lhe acrescentar um novo segmento final e de lhe ter delineado uma engenhosa campanha publicitária. E assim teve inicio o fenómeno Snuff, que, para a época, pode ser apontado como um notável case study do sector da distribuição cinematográfica. Ainda antes de se dar o lançamento, inspirado por rumores relativos a filmes originários da América do Sul e que apresentavam mortes verdadeiras, Shackleton lançou para a imprensa boatos que sugeriam que a barbárie de Snuff acontecera, realmente, durante as filmagens. Michael Findlay, apercebendo-se que se tratava de uma apropriação de Slaughter, exigiu a renegociação do contrato. Allan Shackleton apenas acedeu ao pedido quando, numa entrevista, Michael Findlay quase desmontou a encenação criada. O passo seguinte de Shackleton foi a distribuição de falsos recortes de jornais que exibiam pistas de uma acção judicial contra o filme, por parte de uma suposta entidade apelidada de Citizens for Decency - que por coincidência existia, mas não se manifestou. Por esta altura, os jornais escreviam condenações acesas sobre as indignidades que ninguém vira, pois Shackleton ainda estava a filmar o final que criaria a bomba inesperada. Tratava-se de uma cena que parecia captada nos bastidores da rodagem do filme, em que a equipa de filmagens, com a câmara ligada, rodeava uma das actrizes, torturando-a, mutilando-a e, finalmente, esventrando-a de modo a exibir as respectivas vísceras. Nos últimos segundos, já em off, um dos elementos da equipa lamentava que tivesse terminado a película e não pudesse continuar a filmar. Para incendiar a curiosidade e apelar ao misterioso e exótico, o cartaz de Snuff apresentava, de modo ostensivo: The film that could only be made in South America ... where Life is CHEAP! O público, incentivado pelo buzz, acorreu às salas e o lançamento foi um enorme e rentável sucesso. Allan Shackleton ainda contratou grupos de pessoas para se manifestarem contra a indecência, em frente às salas de cinema. Isto levou a que outras pessoas se juntassem aos contratados, aumentando ainda mais o grupo de cidadãos indignados. Também feministas se uniram aos protestos, dando assim inicio às actividades de uma série de grupos que se declaravam contra a objectivação sexual da mulher no cinema (ver post a propósito de American Mary de Jen e Sylvia Soska). Muitos dos que se manifestavam contra o facto de se tratar de um snuff film genuíno nem sequer o tinham visto, pois caso contrário perceberiam, facilmente, que a actriz que no final, supostamente, é morta pela equipa de filmagens tem apenas semelhanças físicas com a outra que participa no resto do filme. Pouco tempo depois, Michael Findlay morreria num acidente de helicóptero e Roberta Findlay seguiria para o cargo de realizadora na indústria porno. Quanto a Snuff, caberia-lhe um lugar na lista de video nasties do British Board of Film Classification.
Descontextualizada, a inovadora e inspirada noção de marketing de Allan Shackleton - em questão de definição, concretização e recepção - pode parecer ofensiva, amadora e um tanto naïf, mas não podemos esquecer que estamos em meados da década de 1970, muito antes de The Blair Witch Project (Daniel Myrick, Eduardo Sánchez, 1999) e da sofisticação das campanhas de fotografias, posters, teasers, sites ou trailers que inundam o mercado muito antes do lançamento de qualquer filme ou série de televisão. Seria demasiado fácil ver Snuff e apontar falhas nos mais variados campos - aparentemente, até os diálogos foram evitados devido à qualidade da representação e houve a necessidade de recorrer à dobragem por outros actores, incluindo os próprios Findlay. Mas é o actual sufoco do tratamento digital que faz olhar e, por vezes, admirar este cinema artesanal. Com alívio e saudade, mas também com vontade de o ver a encetar um diálogo com o presente. Que o diga a trupe de Quentin Tarantino (o próprio, Eli Roth, Robert Rodriguez, ...). Poucos terão em conta que Ruggero Deodato, autor do infame Cannibal Holocaust, é o assistente de realização no agora reconhecível Django (1966) de Sergio Corbucci. Mas em Agosto deste ano, vamos ter a oportunidade de regressar aos cenários do "mondo film" de Cannibal Holocaust, com The Green Inferno (2013) de Eli Roth, ainda em produção. A deliriously trashy, exuberantly vulgar, lavishly appointed exploitation picture, this weird ... gorefest is made to order for the stimulation of teenage boys. Era assim que, em 2008, um "top critic" da Variety descrevia From Dusk Till Dawn (Robert Rodriguez, 1996), um óptimo herdeiro da exploitation. Muitos anos passaram, mas a sobranceria continuava a mesma. Em 1976, a exploitation era um estimulo para pervertidos, sádicos ou masoquistas. Em 2008, chegava a vez dos adolescentes do sexo masculino. Talvez lá para 2040, um adulto se possa relacionar, dignamente, com este tipo de obras. Terminamos com uma cena retirada de Snuff, para espreitar. //
Snuff (Michael Findlay, Roberta Findlay, Horacio Fredriksson, 1976)