Una lucertola con la pelle di donna





















Una lucertola con la pelle di donna (Lucio Fulci, 1971)




Numa avaliação superficial do cinema de género italiano, Lucio Fulci aparece injustamente  numa categoria abaixo de mestres como Mario Bava ou Dario Argento. Respondendo superficialmente aos que apontam o gore como a única arma de Lucio Fulci, tão desmedido que engole tudo à sua volta incluindo a capacidade de análise do espectador desprevenido, poder-se-ia apontar que, também no caso de Dario Argento, a preponderância da composição dramaticamente operática é responsável pelo mesmo efeito obliterador.

Quando falamos da produção italiana de cinema, falamos realmente de indústria, uma vez que, entre as décadas de 1950 e 1970, chegaram a produzir-se mais de duas centenas de filmes por ano, repartidos pelos mais variados géneros, entre o western, a ficção científica, o thriller, o policial, o peplum, o drama ou a comédia. Esta actividade florescente, determinou que Roma fosse chamada Hollywood do Tibre e que os estúdios americanos para aí deslocassem vedetas e a produção de filmes de grande orçamento, nomeadamente os de carácter histórico. No que toca ao cinema feito por italianos, à exceção dos realizadores respeitados pelas academias (de Sica, Rosselini, Fellini, Visconti, Pasolini, Antonioni), havia uma apetência por um cinema popular que encontrava antecedentes, em meados do século XX, na obra de Riccardo Freda. Detestando a comédia e o realismo, Freda seguira um caminho alternativo ao neorrealismo, desviando o olhar da reconstrução do pós-guerra e trocando as filmagens na rua e os actores amadores pelo controlo do estúdio e a elegância das vedetas, criando épicos sumptuosos que, apesar do financiamento limitado, se tornavam grandes sucessos de bilheteira, não ficando atrás dos seus parentes ricos de Hollywood. Nas décadas seguintes, enquanto a obra de Freda definhava, demasiado presa aos formalismos clássicos ou desajustada dos ímpetos da vida moderna, tornava-se necessária à voracidade comercial da indústria, uma revigorada ousadia no tratamento da violência e do erotismo.

É neste ponto de viragem do cinema de género italiano que se dá igualmente uma mudança radical na obra de Lucio Fulci, anteriormente notado como argumentista e autor de comédias e musicais. Em 1969, Fulci realiza dois filmes bastante diferentes: Beatrice Cenci, um drama histórico e Una sull'altra, um thriller all’italiana, formato que ficaria conhecido como giallo. Ao longo da carreira, Fulci realizaria mais cinco giallos: Una lucertola con la pelle di donna (1971), Non si sevizia un paperino (1972), Sette note in nero (1977), Lo squartatore di New York (1982) e Murderock - Uccide a passo di danza (1987). Ainda em 1969, o realizador seria tragicamente abalado pelo suicídio da esposa que, através de intoxicação com gás, põe fim ao sofrimento causado por uma doença cancerígena. Filmado nos Estados Unidos, em cenários reais, incluindo uma câmara de gás, o negrume de Una sull'altra parece refletir essa perda irreparável. Marisa Mell, a vedeta do fabuloso delírio pop Danger: Diabolik (1968) de Mario Bava, é uma das protagonistas, ao lado de Elsa Martinelli e Jean Sorel. Fulci filma o final, em que Sorel devido a um erro judicial é condenado à morte na câmara de gás, sem qualquer sentimentalismo e de modo tão seco que quase se aproxima do registo realista. Na última cena, cabe a um repórter contar o desfecho da história, com a salvação de Sorel, sem qualquer flashback ou imagem do galã, que, havia minutos, deixáramos na cela à espera da execução.

Dois anos depois, Jean Sorel, “perfeito” playboy inexpressivo, volta a representar um marido adúltero em Una lucertola con la pelle di donna. A esposa, Carol Hammond  (Florinda Bolkan) tem recorrentemente sonhos em que se envolve sexualmente com a vizinha libertina, Julia Durer (Anita Strindberg). Sem grande espanto, o psicanalista ao interpretar o sonho conclui que Carol deseja sexualmente a vizinha, a encarnação do pecado e da degradação moral, cuja casa funciona como símbolo do vício. Um dia Carol sonha que mata brutalmente Julia, mais tarde descobrindo que a vizinha foi de facto assassinada. Una lucertola é um giallo um tanto atípico. Primeiro, porque não existe um assassino misterioso, torturado por uma memória, que vai dizimando personagens – aqui, a única incógnita é relativa à morte de Julia Durer que acontece pouco depois do inicio do filme. Mais, Fulci recentra o filme no processo policial, sendo que, nos assassinatos que acontecem posteriormente, não só a vítima reconhece o assassino, como também o espectador, a quem, segundo a fórmula do giallo, deveria ser vedada esta informação até perto do final. A decadência normalmente instalada em famílias aristocratas que vivem segundo modelos tradicionais em ruína – da qual será arquétipo visual a condição de Veneza enquanto cidade a afundar-se nas águas – dá lugar à modernidade da Swinging London e dos novos valores da cultura hippie.

Se no seu próximo giallo, Non si sevizia un paperino, Fulci olha para o interior de Itália e para a corrupção no seio de estratos sociais ancestrais, em Una lucertola sugere desencanto com as novíssimas formas de organização social predominantemente de origem urbana. É também aí que se reproduz o pecado, a degradação moral e o vício. Num dos primeiros planos, Florinda Bolkan aparece deitada numa cama que mais parece uma gaiola, envolta por armações de ferro. Encontramos nela sentimentos contraditórios em relação ao “amor livre”, sublinhado pelos novos desenvolvimentos sociais, que lhe provocam curiosidade, mas também se apresentam como ameaça à sua condição social de mulher branca, heterossexual, oriunda de um estrato social alto. Como fórmula recorrente, o envolvimento de mulheres em relações lésbicas não passou despercebido aos movimentos feministas que acusavam os cineastas de exploração sexual da mulher. Especialmente, por se tratar de filmes realizados por homens e dirigidos a um público maioritariamente masculino. Mas nem sempre era esse o entendimento, uma vez que duas mulheres envolvidas sexualmente poderiam representar para o homem, simultaneamente prazer e ameaça – neste ultimo caso, ao constatar a possibilidade de prazer sexual pleno, dispensando a presença masculina.

O último plano de Una lucertola coloca-nos no mundo dos mortos, debruçando-se sobre as sepulturas num cemitério. Passados poucos anos, seguindo a palavra de ordem de George Romero - when there's no more room in hell, then the dead will walk the earth – caberá a Fulci abrir as portas do inferno e soltar os mortos em Zombi 2 (1979), falsa sequela de Dawn of the Dead (George Romero, 1978), e depois na falsa trilogia Gates of Hell: Paura nella città dei morti viventi (1980), ...E tu vivrai nel terrore! L'aldilà (1981) e Quella villa accanto al cimitero (1981). Foram estes os filmes que deram fama a Fulci, pelo uso de um gore estilizado que submete o corpo a novas formas que remetem tanto para o território do body horror como para o desmembramento na obra pictórica de Francis Bacon – já em Una lucertola pressentíamos Bacon nas pinturas da casa ou nos sonhos de Carol. Com o gore, Lucio Fulci parece sugerir que são os corpos rasgados que autorizam a libertação violenta das vísceras, como se estas estivessem, impacientemente, expectantes à espera de permissão de saída.


Versão revista do texto distribuído no âmbito do evento 3 na Cossoul que decorreu na Sociedade Guilherme Cossoul com produção dos colectivos À pala de Walsh, Germinal Art e White Noise.



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