Cartaz de Frontière(s) (Xavier Gens, 2007)
Enquanto os americanos juntavam os cacos resultantes da guerra de palavras em torno do torture porn, os franceses propunham uma série de filmes a que o crítico James Quandt, num artigo para a revista Artforum, apelidava de New French Extrimity. Bava as much as Bataille, Salo no less than Sade seem the determinants of a cinema suddenly determined to break every taboo, to wade in rivers of viscera and spumes of sperm, to fill each frame with flesh, nubile or gnarled, and subject it to all manner of penetration, mutilation, and defilement, assinalava Quandt, de forma certeira, no artigo. No meio dos autores nomeados - grande parte deles eram nomes queridos da crítica francesa - surgia um jovem cineasta que lançara um filme de terror que se distanciava do formato que associamos ao cinema de autor francês. Falamos de Alexandre Aja e do seu filme Haute tension (2003), um slasher que deixava a milhas a maior parte da concorrência norte-americana da época. Para isso contribuíam muito a segurança de Aja na direcção e os efeitos especiais criados por Giannetto De Rossi, que colaborara habitualmente com Lucio Fulci e também com David Linch para o brilhante desenho futurista de Dune (1984). A Lionsgate (casa das séries Saw e Hostel) acabaria por lançar o filme no mercado norte-americano e o sucesso foi imediato dentro dos círculos do cinema de terror.
Nos anos seguintes, outros títulos franceses marcaram a actualidade do cinema de terror internacional: Ils (David Moreau, Xavier Palud, 2006) , Frontière(s) (Xavier Gens, 2007), À l'intérieur (Alexandre Bustillo, Julien Maury, 2007) e Martyrs (Pascal Laugier, 2008), de tal forma que se começou a falar de um movimento de cinema de terror francês, cuja existência os autores dos filmes negavam. No entanto, para além de os realizadores andarem quase todos na casa dos trinta anos e terem o cinema americano como grande referência, tornava-se evidente que havia temas comuns aos filmes e um contexto social e politico que era referido nas narrativas e que parecia contextualizar as obras. As revoltas de jovens franceses suburbanos foi um tema que marcou a actualidade mediática de 2005 e que coincidiu com a produção de vários desses filmes. Residentes nos subúrbios das grandes cidades e descendentes de comunidades oriundas do norte de África, os jovens foram protagonistas de actos que envolviam o incêndio de carros e de edifícios públicos e pelos quais se manifestavam contra uma França que, enquanto se promovia como a casa da liberdade, igualdade e fraternidade, lhes devolvia um futuro sem esperança e marcado pela discriminação. Uma luta entre a cidade endinheirada e o subúrbio remediado, ao qual era negada qualquer hipótese de integração. Outro acontecimento que os filmes parecem evocar é a ascensão no seio da sociedade francesa de partidos de extrema direita e de ideias a ela associadas. É este o quadro que acaba por ditar um dos grandes temas explorados por estes filmes: o medo da diferença e do Outro. Não acompanhamos a opinião de muitos críticos que acusam os filmes de gratuitidade na forma como exploram a representação da violência, tendo como único objectivo quebrar limites e consequentemente provocar o espectador. No entanto, parece-nos que alguma subtileza seria desejável e que, em alguns momentos, as doses crescentes de violência e histerismo, sonoro e visual, acabam por anestesiar e alienar o espectador.
Tradicionalmente, nos Estados Unidos, o mercado do cinema de terror é um negócio lucrativo. Com alguma regularidade, filmes desta área ocupam lugares cimeiros no box office e estrelas de primeira grandeza encabeçam os elencos. Em França, os filmes americanos conseguem receitas de bilheteira consideráveis que contrastam com os valores modestos ou mesmo fracos que atinge a produção local. Para se ter uma ideia, Paranormal Activity 3 (Henry Joost, Ariel Schulman, 2011) conseguiu 807 464 entradas, enquanto Ils obteve 251 302 e À l'intérieur apenas 70 839 – nem mesmo a presença de Béatrice Dalle neste último conseguiu inverter a tendência. No entanto, se a produção local foi recebida com indiferença em França, também é de notar que suscitou uma atenção enorme nos festivais de cinema de terror e da crítica especializada norte-americana. Uma das razões que pode explicar o interesse por estes filmes nos Estados Unidos, para além da utilização do gore em doses industriais, é a influência que a memória do cinema de terror americano exerce sobre eles. Ao virar de cada cena espreitam, entre muitos outros, os efeitos sonoros e o ambiente bizarro de The Texas Chain Saw Massacre (Tobe Hooper, 1974), a violência gráfica das cenas finais de Carrie (Brian De Palma, 1976) e até mesmo a linha ténue que separa o sobrenatural do real de Jeepers Creepers (Victor Salva, 2001). Não tardou que muitos destes autores fossem convidados a tentar a sua experiência americana, com os donos dos estúdios a procurarem aliar criatividade jovem a rígidos códigos de trabalho, num jogo que parecia difícil de equilibrar. Como seria de esperar, os resultados demonstraram ser desiguais.
Livide (Alexandre Bustillo, Julien Maury, 2011)
A onda de remakes de clássicos americanos das décadas de 1970 e de 1980 e do J-Horror japonês, em que a indústria de Hollywood estava empenhada, tornou-se o campo privilegiado de onde saiu a maior parte das propostas de trabalho. Alexandre Aja – apesar de ser francês foi incluído no grupo dos Splat Pack - foi o primeiro a chegar e aquele que obteve maiores sucessos de bilheteira. Foi convidado a fazer uma revisão do clássico de Wes Craven, The Hills Have Eyes (2006). Seguiram-se Mirrors (2008) e Piranha 3D (2010). A David Moreau e Xavier Palud coube The Eye (2008), com Jessica Alba e a partir do filme com o mesmo nome realizado pelos irmãos Pang. As coisas não correram bem e os realizadores deram conta da sua insatisfação, queixando-se da forma como o estúdio controlou a edição, o que determinou que o resultado final estivesse longe do que inicialmente tinha sido desenhado. O poderoso Bob Weinstein convidou dois dos mais talentosos, Alexandre Bustillo e Julien Maury, para ressuscitarem a série Hellraiser, porém as negociações acabaram com uma resposta negativa por parte dos realizadores. Ainda se falou de um novo Halloween com assinatura da dupla mas tal não se confirmou. Regressaram a França para trabalhar em Livide (2011), com meios bem mais modestos e com a liberdade criativa que lhes fora recusada. Ironicamente, já se fala de um remake deste filme, em língua inglesa, feito pelo produtor francês e com outro realizador. No final deste mês inicia-se o lançamento internacional de The Tall Man (também conhecido por The Secret), o primeiro filme de Pascal Laugier falado em inglês. Quanto a Xavier Gens, depois do choque de Frontière(s) seguiram-se a adaptação do jogo vídeo com o mesmo nome, Hitman (2007), e mais recentemente The Divide (2011). A estreia deste último em Portugal tem sido adiada e está novamente agendada, para Setembro. Também nesse mês, durante o MOTELx será apresentado Livide, pela primeira vez em Portugal. Com estas duas apresentações no nosso país, teremos uma boa oportunidade para medir o pulso da produção recente de autores oriundos desta vaga de cinema de terror francês.
Em The Divide, ainda antes de surgirem os créditos e o nome do filme, vemos uma série de explosões nucleares que levam um pequeno grupo de habitantes de um arranha-céus a proteger-se no espaço isolado de uma cave. Pelo desenho urbano, adivinhamos estar em Nova Iorque. A porta da cave fecha-se deixando do lado de fora a poeira nuclear que faz desaparecer o mundo, tal como era conhecido. Durante as próximas duas horas ficamos reduzidos ao espaço da cave e ao que vai sobrando do grupo de sobreviventes. Protegidos, mas impossibilitados de sair e com recursos limitados para assegurar a sobrevivência, criam uma micro-sociedade com traços fascistas, geradora de lutas de poder, em que os mais fortes exploram as angústias dos mais fracos e em que o dominador troca rapidamente de lugar com o dominado. É muito pouco o que é fornecido sobre o passado destas personagens, nem isso seria relevante para explicar a bestialidade que é gerada num mundo sem futuro. São aqueles, como poderiam ser outros, como poderíamos ser nós. Os contornos da narrativa não seriam muito diferentes. De cena em cena, a violência de cada plano sempre em crescendo - em busca do máximo possível de prazer antes do fim, num processo de decadência até à eliminação da ultima réstia de humanidade. Não é comparável com a grandeza de Salò o le Centoventi Giornate di Sodoma (Pier Paolo Pasolini, 1976), mas não deixa de ser uma leitura possível para os dias de hoje do romance do Marquês de Sade em que Pasolini se inspirou. Numa das suas cartas, Sade refere que imaginou tudo o que poderia ser concebido, mas certamente que não teria feito tudo o que concebeu e que, seguramente, jamais o faria. É na cave de The Divide que foram criadas as condições para levar a cabo o variado cardápio das obsessões de Sade: humilhações de todo o tipo, inclusive com fluídos corporais; torturas; mutilações; violações; ou assassínios. Já perto do final, a ordem estabelecida é subvertida, quando a dominação masculina é contestada e derrubada. O filme foi filmado por ordem cronológica, em longas sequências, e os actores foram incentivados a improvisar. Este lado performativo permitiu ir reescrevendo as personagens, o que desencadeou tensões entre os actores durante a rodagem, de tal forma que isso se pressente no filme. Num decór fechado e inexpressivo, que facilmente poderia enfadar, é à câmara e aos actores a quem coube criar uma dinâmica que pudesse anular essa limitação. Por isso, não poderíamos deixar de destacar o bom naipe de actores: entre eles, Rosanna Arquette, Lauren German (a protagonista de Hostel: Part II), Michael Biehn, Michael Eklund e Milo Ventimiglia (o menino bonito da série Heroes). Xavier Gens mantém as qualidades que apreciáramos em Frontière(s) e ainda controla um certo histerismo visual, tornando The Divide um dos melhores filmes pós-apocalípticos que vimos nos últimos tempos. Já que mais não fosse, teríamos de reconhecer a força invulgar de Gens ao impor à industria americana um final tão negro. Numa entrevista recente perguntaram ao realizador se, no caso de acontecer uma explosão nuclear, preferiria morrer imediatamente ou lutar para sobreviver. Vendo The Divide não será difícil adivinhar a resposta.
Estava previsto que Livide fosse filmado na Irlanda e com um orçamento confortável. Questões relacionadas com intromissões na orientação artística do projecto levaram a que a rodagem ocorresse na Bretanha francesa e com um orçamento bem mais modesto, inferior ao de À l'intérieur. As paisagens naturais (lembrando os filmes da Hammer) e as lendas dessa região servem de inspiração a uma história de vampiros, mas sem os alhos, os crucifixos, os reflexos no espelho e todos os outros clichés do género. Durante um estágio de cuidados médicos ao domicílio, Lucie (Chloé Coulloud) ouve uma história relacionada com um tesouro escondido numa mansão decrépita e decide procurá-lo, juntamente com dois amigos (Félix Moati e Jérémy Kapone). A única informação que têm da casa é que a dona (Marie-Claude Pietragalla), uma antiga professora de dança, vive aí sozinha, acamada e em coma. Béatrice Dalle regressa num pequeno papel, como mãe de Lucie. Ao contrário de alguma informação que corre, nem Livide é um giallo, nem Alexandre Bustillo e Julien Maury são, até ver, qualquer tipo de herdeiros de Dário Argento. Até porque o filme recusa, nitidamente, ceder a uma tentativa de categorização. Começa em modo de retrato social, segue para o giallo – via Chi l'ha vista morire? (Aldo Lado, 1972) -, continua em jeito de slasher, vira para uma história de vampiros, volta ao giallo – via Suspiria (Dário Argento, 1976) - e termina como conto de fadas. A mistura de géneros e referências, mantendo uma saudável narrativa aberta e com algumas pontas soltas, contrasta com o minimalismo de À l'intérieur, que se tornava demasiado explicativo – de resto, um problema que era partilhado pela maior parte dos outros filmes dessa vaga. Temos menos gore (o suficiente) e mais poesia. Outro ponto a reter é o tratamento da luz, com inspiração no chiaroscuro do pintor Georges de La Tour – para as cenas de escuridão – e nas pinturas de bailarinas de Edgar Degas – para as cenas com luz natural. Com a sua estreia mundial no festival TIFF 2011, o filme teve uma recepção bastante fria, talvez causada pelas expectativas, no nosso entender exageradamente elevadas, que foram colocadas sobre a dupla de realizadores. Tal não impediu que a Dimension Films tivesse assegurado a sua distribuição para o mercado norte-americano – sem ter adiantado até hoje qualquer detalhe sobre o lançamento. Esta companhia já tinha sido responsável pela tentativa de envolvimento dos realizadores em projectos made in USA e também pela distribuição de À l'intérieur nesse mercado. À l'intérieur foi recebido como um verdadeiro acontecimento. Livide é o desejável copo de agua fria direccionado ao buzz que se criou. Uma boa razão para, em Setembro, ir ao MOTELx. //